Rapper angolano Isis Hembe cria festival inclusivo que reúne mesas redondas, oficinas, circo, cinema, exposição e a ópera hip-hop de sua autoria
Por Eloá Chaignet, Luanda.
Quando uma ideia encontra a oportunidade de realizar-se, é como se uma semente pudesse repousar no solo, para germinar, crescer e florescer. Foi o que aconteceu quando o rapper Isis Hembe e a então diretora do Goethe-Institut de Angola, Gabriele Stiller-Kern, tiveram a ideia de um festival inclusivo e aplicaram para a chamada aberta do EUNIC – European Union National Institutes for Culture.
Isis tinha o texto para uma peça, mas, devido às especificidades do edital, ele pôde sonhar alto e idealizar um festival de artes inclusivo que mobilizou três institutos culturais europeus: português, alemão e francês, promovendo intercâmbio cultural focado na diversidade e inclusão nas artes, apoiado no conceito do design universal.
Com sorriso de satisfação pela repercussão do festival e bem disposto, ele chegou ao Goethe-Institut de Angola para falar com exclusividade ao Portal Vozes sobre o “No meu mundo Festival Inclusivo de Artes”, que aconteceu em Luanda entre os dias 12 e 29 de outubro, com mesas redondas, oficinas, circo, cinema, exposição e a ópera hip-hop de sua autoria, “As aventuras de Angosat”.
O rapper falou sobre a importância da representatividade de pessoas com deficiência, a fusão de diferentes linguagens artísticas, como ópera e hip-hop, para criar um espetáculo inclusivo, a busca por uma identidade própria em meio às influências culturais e nos trouxe uma reflexão sobre o conceito de beleza e inadequação, e como o belo pode quebrar barreiras e promover a mudança de perspectiva.
Confira a entrevista.
Quem é o Isis Hembe?
É um rapper. Eu gosto de me colocar só nesta questão embora faça várias coisas, porque é a partir do hip-hop que eu consegui tornar a minha presença social mais abrangente. Eu sou um MC. Sou do Bié, mas residente em Luanda há muitos anos. Eu me sinto filho desse espaço e com uma grande paixão de contribuir para que o olhar da alteridade seja mais presente na vida social. Eu acho que como rapper a minha missão é ser uma espécie de oculista. Espero criar lentes para conseguirmos ver outras coisas, os outros.
Todo esse festival foi uma ideia sua?
Sim, sim. Na verdade, eu tive um golpe de sorte. Eu fui chamado pelo Instituto Goethe para fazer uma consultoria a respeito do programa que nós estávamos a fazer para concorrer a uma bolsa da União Europeia, para fazermos uma coisa inclusiva. Ainda não tinha nada elaborado. Mas eu, como sou artista, e tenho algumas obras relacionadas ao tema, vi nisso uma oportunidade de mostrar as minhas ideias. O Instituto abraçou e disse que poderíamos pensar um pouco mais abrangente e eu propus uma ideia que eu já tinha a navegar no meu inconsciente, que era mesmo de fazermos um projeto a partir da abordagem do design universal, que é essa abordagem de falarmos acessibilidade sobre vários prismas e com alguns aperitivos éticos. Tentar pensar a acessibilidade com as pessoas que precisam dessa questão, porque normalmente o que acontece cá em Angola, especificamente, é que as pessoas nessa variante normativa, dos corpos normativos, as soluções que eles nos trazem não vão de encontro às nossas necessidades. Então, fui dando ideias em relação a qual é o olhar de uma pessoa nessa diversidade funcional e como é que nós abordamos as soluções. E fomos construindo em grupo e pronto, deu no que deu.
A gente só pode falar daquilo com propriedade quando a gente vive.
Exatamente. Só que os centros de poder, os centros de decisão não são democráticos, ou seja, não são representativos.E pessoas que têm necessidades específicas sofrem por dependerem de respostas de pessoas que não entendem as nossas questões.
Então, pensamos essa questão do design universal de forma a tornarmos o festival aberto para todas as pessoas, tanto na produção como no consumo, e com a ética de que tudo poderia ser razoavelmente adaptado dentro das condições que nós tivemos disponíveis. E conseguimos fazer uma gama de atividades nas quais estava inclusa essa ópera, As Aventuras do Angosat.
Pessoas com deficiência com dificuldade motora, como nós, temos uma barreira muito mais visual, então nós praticamente sequestramos o tema da acessibilidade. Porque quando se fala de acessibilidade normalmente se fala muito sobre o acesso às instituições, a questão das barreiras arquitectónicas, mas a acessibilidade é uma coisa muito ampla, acesso a informação e por aí vai.
Nós queremos, com esse projeto, colocar como uma bandeira ética de forma a seduzirem também as pessoas que estão ao nosso redor. Que há novas respostas, há respostas mais interessantes, mais coloridas e que abraçam mais a diversidade.
Como é que surgiu a idea de encenar o Angosat?
O Angosat é uma obra particular minha que eu já tinha escrito. Na verdade, era pra ser um outro nome, Voyager. Dentro da minha arte eu tenho um projeto filosófico, que é de promover a alteridade como meio de erguer a nossa identidade, porque eu percebo sempre que a nossa problemática atual é de construção de identidade, principalmente nós africanos, temos essa questão do colonialismo. Então a nossa vitalidade social está muito voltada nessa busca da nossa real identidade. Mas eu, enquanto artista, me sinto provocado a questionar um pouco se a identidade é algo que nós vemos a olhar para nós mesmos ou a olhar para os outros. Então, baseado nessa ideia eu fui pesquisando coisas e fui me convencendo que as nossas identidades não saem de nós, elas brotam de um olhar para o outro. Eu estava a criar o projeto das “Aventuras do Angosat” voltado nisso, nessa busca da vida inteligente fora da terra, que é também uma provocação que vai nos fazer encontrar a vida inteligente dentro de nós.
Eu já tinha essa peça praticamente escrita e surgiu essa oportunidade de falar com o Goethe-Institut e propus a ideia. A Gabriele achou interessante e a partir daí vimos que a ideia era muito boa para estar isolada no espaço, então pensamos em fazer um festival com a mesma tónica.
E podes falar um pouco sobre a peça?
A peça conta a história do Man Ré que é um astronauta angolano que foi incumbido da missão de encontrar a vida inteligente fora da Terra. E eventualmente ele se perde lá no espaço e começa a fazer elucubrações filosóficas a respeito dessa necessidade de busca sempre dessas coisas outras que não somos nós. Há uma peripécia e aí já é o spoiler, a gente não fala. (risos)
O Man Ré é inspirado numa pessoa com deficiência, que foi um cantor angolano, que era invisual, e ele teve um destaque mediático interessante, mas ele teve um destino que não foi tão bom, que tem essa questão da pobreza associada com a pessoa com deficiência. Pronto, basicamente é isso As aventuras do Angosat.
Saramago no conto da Ilha Desconhecida tem uma frase que é muito conhecida: “É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não sairmos de nós.” Isso tem tudo a ver com o que você disse agora e remete completamente a essa jornada do Man Ré. De onde veio a ideia ou a inspiração pra falar de ir pra fora do planeta para refletir sobre o que está dentro do planeta e sobretudo dentro de nós?
Eu tenho uma proximidade com a filosofia, mas aquela filosofia clássica. Houve um momento da minha vida artística que eu fiquei à busca de referências africanas a respeito dos pensadores africanos que pensavam filosofia. Encontrei muita coisa interessante, pensadores como Amenomope, Imhotep, me levaram a reflexões em relação a essa nossa relação entre nós e as outras coisas. E como eu disse anteriormente, eu identifiquei que o problema contemporâneo é uma crise de identidade, porque nós viemos de sistemas muito complexos que estão a se desfazer baseado nesses encontros com outros. Por exemplo, a partir do momento que os europeus chegaram aqui em África, eles encontraram outras coisas, outras experiências de vida. E esse contato nem sempre foi muito amistoso e trouxe uma civilização com muitas questões problemáticas. E hoje nós temos uma oportunidade única de olhar para isso e dizer não.
Se calhar, há uma voz única, há uma narrativa que abala um pouco essa ideia de diversidade, que não é exclusiva a questão da deficiência, mas é a questão do outro mesmo. Encontrar as outras pessoas com outras referências, com outra cultura, com outra vivência. Então esse elemento do nós e o outro para mim é uma fonte inesgotável de muitos questionamentos. E um deles é esse, que nós estamos sempre a explorar, a tentar procurar a última novidade, a última coisa, mas ao mesmo tempo olhamos para nós, é como se houvesse um desconhecimento muito profundo a respeito das nossas vivências internas.
O apagamento histórico?
Exatamente. Eu sinto que a nossa missão geracional atualmente é de tentar descobrir esses outros que foram abalados por apagamento histórico, por preconceitos de várias ordens, gêneros, etc. E nos reconciliarmos um com o outro. Mas esse outro somos nós ao mesmo tempo, porque de alguma maneira nunca houve essa homogeneidade, a humanidade sempre foi muito plural.
Essa tentativa de ter uma unidade que não respeita muito a alteridade, é muito estranho. Então essa complexidade desse trânsito tem que mudar sempre. Eu não tenho só “As aventuras do Angosat”, a maior parte das minhas obras tem como princípio essa busca de tentar entender como é que nós nos relacionamos com o outro e a partir desse relacionamento, o que é que nós construímos sobre nós, a imagem que nós construímos sobre nós.
Quanto tempo foi necessário para tirar do papel e fazer virar um espetáculo?
Nós tivemos um processo, porque não foi só a obra, tinha o projeto do festival inteiro, mas foi um mês intenso onde nós tivemos uma presença quase que milagrosa da nossa encenadora e diretora artística, que é a Fernanda Farah.
Como aconteceu esse encontro com a encenadora brasileira?
Isso aconteceu por causa da Júlia Schreiner, que é a atual diretora do Instituto.
Eu não sou do teatro, apesar de eu ter muita proximidade com a arte cênica, mas eu precisava de um profissional que colocasse o drama, a dramaticidade da coisa. E a Júlia indicou a Fernanda e não podia ter indicado uma pessoa melhor. Fizemos uma coisa interessante, foi muito intenso. Eu queria desistir de ser ator, eu disse: não consigo isso! (Risos)
Ela conseguiu tirar o melhor de mim e do grupo todo. Acho que deu muito certo. Nos falávamos por Zoom, ela é residente e cidadã alemã, mas quando chegou aqui, já pôs a mão na massa: “faz aí a cena, eu quero ver”. É aí que começou o nosso trabalho mais árduo.
Vocês nomearam de ópera Hip-Hop, de onde veio esse nome que junta erudito com um popular, até pouco tempo muito marginalizado? Vocês juntaram extremos numa coisa só e isso diz muito sobre o trabalho, não é mesmo?
Eu tive uma formação em canto lírico. Mas não terminei, mas pronto, eu tenho conhecimento desse universo. Eu pesquiso muito sobre esse tema, mas eu me apropriei da ideia da ópera mais tradicional mesmo, que é a ideia da obra teatral, musical.
Logicamente, a própria linguagem sofreu muitas modificações. E hoje está nessa coisa mais de cultura erudita, mas há um elemento tradicional que é uma coisa que une um pouco as coisas. É uma coisa que acontece muito nas nossas culturas contemporâneas. Nós pegamos coisas tradicionais, como teatro e levamos isso a um status assim como se isso não viesse da efervescência da realidade. Eu não me identifico muito com essa abordagem, eu pego essas linguagens e gosto de lhes trazer naqueles elementos mais tradicionais da obra, de tentar fazer uma obra teatral voltada a esse elemento musical, sem os filtros muito específicos de como é que isso se efetuaria. Nós nos apropriamos desse nome, mas com essa abordagem mais natural possível da época áurea desse gênero artístico. Agora o hip-hop é a minha disciplina e nós temos uma ética da reciclagem. Nós gostamos de pegar e ressignificar as coisas.
Se há alguma coisa que define o hip-hop na minha visão, é essa visão da reciclagem.
Então nós reciclamos tudo, nós pegamos trechos musicais, transformamos em samples e colocamos aquilo noutros contextos e vira uma outra coisa. Essa é uma ética muito própria da cultura e nós nos apropriamos disso. Vamos pegar o pensamento da ópera e vamos colocar noutro contexto. A ópera é um sample.
É o espírito do trabalho, tanto a nível da própria linguagem, da estética, da coisa com os vídeos, tudo foi baseado nessa perspectiva do sample.
O corpo não normativo em destaque, em plena potência, é o ponto alto do espetáculo. A diversidade e talento das pessoas sendo de fato explorado e não usado como cota. Como é que vocês fizeram a seleção do elenco?
Na verdade, boa parte do elenco já foi milimetricamente pensado antes mesmo de nós procurarmos pessoas. Nós já tínhamos praticamente definido algumas ideias que esteticamente faziam sentido com a proposta da obra, que é exatamente isso que tu dissestes. Porque para pessoas com deficiência a integração desse elemento cota é, às vezes, reductora, esvazia. As pessoas querem se sentir presentes, se sentir úteis, necessárias e na verdade são.
Havia um dançarino muito hábil e fantástico com apenas uma perna e um braço, como vocês acharam ele? Onde acharam as pessoas do elenco?
Nós tivemos até um grande desafio para encontrar as pessoas, mas nós tivemos um parceiro que é o Animart, o espaço que acolheu aquilo. Eles dominam mais ou menos o universo de quem são as pessoas que têm essas potências, essas características e eles nos ajudaram a fazer o casting.
Esse rapaz que você fala é o Scott, ele foi um dos últimos a integrar. Nós estávamos à procura de dançarinos em diversidade funcional e estava sendo muito difícil encontrar. Por um golpe de sorte alguém disse que conhecia ele, nós entramos em contato, ele se colocou logo em disposição. No primeiro dia ele já deu um show e nós falamos: – és tu que nós estávamos à procura e pronto. Mas basicamente o Animart é a instituição que promoveu essa questão do casting. Eu só estive lá para ajustar. Nós em África, praticamente todo mundo é artista. Então quando você abre o casting, vem milhares de pessoas que têm muitos talentos, mas nós tínhamos uma coisa muito específica e tivemos que fazer uma seleção dolorosa, porque muita gente, eventualmente, poderia dar o máximo, mas não se encaixava na proposta.
Mas vocês tinham um perfil específico para esse personagem?
Nós só queríamos um dançarino em diversidade funcional. Agora, qual era especificamente? Não tínhamos essa coisa. Porque se não ficaria muito específico e eventualmente não íamos conseguir encontrar aquela agulha no palheiro. Então, nós deixamos um pouco aberto. Houve também um olhar genial da Fernanda, a nossa diretora artística. Havia coisas que eu pensava, eu tinha um pouco de cabeça fechada em relação a como é que nós devemos fazer a performance, e ela disse: “não, vamos colocar todo mundo no palco! Vamos fazer uma bagunça organizada, onde vamos explorar todos os potenciais de todo o mundo”.
Tinham corpos ali que eram lidos como normativos, mas que tinham outras particularidades, tinha alguém que era neurodivergente?
Sim. O nosso principal desafio atualmente em Angola é que nós não temos muito esse controle, né? Então fica muito difícil fazer esses diagnósticos sem o respaldo médico, mas nós tínhamos algumas deficiências não aparentes. Por exemplo, nós tínhamos uma pessoa com surdez parcial, ela fala um pouco, embora ela seja surda e nós a colocamos também a falar, a dançar e ela ficar atenta aos movimentos de outros a entrar no ritmo. Há personagens que estavam ali sem deficiência aparente, personagens mesmo sem deficiência. Nós fizemos um mix total, mas o nosso objetivo também foi não monopolizar isso só para questões com a deficiência, porque isso ia derrubar a nossa tese de inclusão. Então agora vamos popularizar, é mesmo uma festa da diversidade! A diversidade é isso! São todos os corpos juntos. Numa sociedade normal, aquela peça seria o normal, porque como humanos é aquilo que existe, são as pessoas que compõem, que fazem as histórias. Mas, de sorte, não são as retratadas por uma questão de alguma padronização um pouco esquisita em relação a como é que nós gostamos de ser representados. Então, de alguma maneira, essa peça é a que nós gostaríamos de ver uma história de amor onde um cadeirante é o personagem principal, etc. Porque nós estamos aqui a viver as nossas histórias. Então eventualmente é possível representar essas histórias nos nossos ecrãs, nos nossos teatros.
A história desses corpos está ligada de alguma maneira à história da Angola? O histórico de guerra do país é recente. Existem pessoas que são mutiladas de guerra que são jovens, porque a guerra foi ontem. Tem as questões sanitárias que complicam o acesso à vacina, a poliomielite foi extinta há 12 anos. Angola só recebeu o documento de erradicação da OMS em 2015. Você acha que a história do país cruza os corpos dessas pessoas?
É completa a tua visão, faz todo o sentido, porque a maior parte das pessoas que estão lá, incluindo eu, os nossos corpos estão marcados com a nossa sociologia, evidentemente.
Por exemplo, aquele rapaz que fizeste referência, ele teve um acidente relacionado à energia. Então, são coisas que acontecem por um contexto social específico. Eu, por exemplo, meu corpo veio de um momento, me tornei uma pessoa com deficiência num momento específico. Em Angola supostamente tinha uma epidemia, foi dito que era poliomielite, mas não há uma evidência assim muito cientificamente comprovada que era mesmo só de fato poliomielite, mas muita gente da minha geração, estamos a falar do princípio dos anos 90, 80… Eu tenho 35 já. Tivemos um contexto social, eu teria de ter feito algumas intervenções cirúrgicas, mas eu era muito criança para altura, então tive que esperar, mas a guerra aconteceu e a minha família desmembrou-se, eu tive que ir para matas com a minha família, vivi no internato, só com dois irmãos. Então isso tudo condicionou o meu corpo, porque não fiz fisioterapia, não fiz tratamentos… Estava tentando viver. Esse contexto claramente e de forma inequívoca, teve impacto nos corpos das pessoas. Então, sim, o teu diagnóstico foi muito preciso nessa questão.
Foi muito chocante, famílias inteiras mortas, enfim, e isso nos trouxe até onde nós estamos agora, então, de alguma maneira, ainda há esse passivo no presente, nos corpos das pessoas, isso é inevitável, acho que vai durar mesmo algumas gerações, sem dúvidas, não tem como fugir disso. Mas agora, de alguma maneira, nós temos que acelerar esse processo de catarse com essas obras culturais e com eventos. E isso explica um pouco também a nossa sociologia. Nós somos um povo que tenta sempre fazer coisas grandes. Tenta sempre fazer o aeroporto maior de África, porque há uma urgência em expressar a grandeza porque nós estamos muito ancorados nessa escassez. E houve um pouco, esse elemento entre escassez e abundância. Estamos num solo muito rico, com muita coisa assim, mas ao mesmo tempo com muita pobreza, muita exploração. Então essa dicotomia é legisladora das nossas vidas atuais. E nós somos um povo vaidoso. Naturalmente você vê até as comunidades que não têm muita relação com as culturas ocidentais, vamos dizer, por exemplo, as Mumuílas. Você as encontra a tratarem do cabelo, a tratarem com as miçangas e etc. Claro que o filtro de belo deles é outro, mas nós temos essa coisa natural.
Mas é mais genuíno, porque não é o belo homogeneizado. Na sua visão o que é o belo?
O belo é muito diverso para ficar dentro dessas categorias limitadoras. Então, a nossa expressão como angolano já tem esse gingado. A guerra, a colonização, essas coisas foram impedidoras dessa expressão natural. Então quando há um espaçozito, nós queremos ser exuberantes.
O que você achou da repercussão do festival?
Foi muito para além da nossa expectativa, mas aí eu entendi o que as pessoas esperam nas coisas relacionadas à diversidade. Eu senti que foi uma coisa do tipo, uau, isso já devia estar aqui. No fundo a ideia de normalidade é muito subestimada e não vai muito de encontro aquilo que nós, enquanto indivíduos, como nós nos enxergamos. É como se eu contasse um segredo de que nós somos todos diferentes, de que nós somos todos únicos e as pessoas dissessem, uau, agora nosso segredo está. Está à vista! Já não precisa esconder que eu sou diferente, que eu tenho as minhas idiossincrasias especiais. Então, a repercussão foi linda. E mais do que a repercussão até externa, dos meios de comunicação, é a repercussão do próprio projeto internamente.
Eu tive depoimentos de pessoas, atrizes, elas a dizerem: “pô, eu nunca imaginei que eu ia participar de uma coisa tão importante, tão relevante”. Isso foi uma das coisas que mais me moveram. Eu fiquei muito emocionado que artistas que se enxergavam fora dos apetecíveis para coisas interessantes esteticamente, eles a se sentirem, uau, afinal tem um lugar para nós, afinal nós podemos nos colocar, sem ser aquele colocado de cota, que tu disseste. É a pessoa a sentir, não, eu sou um grande ator e eu estou aí a fazer um trabalho que é importante para aquela obra, não estou lá simplesmente porque temos que estar. Essa repercussão é o que mais me emociona. As escolhas não normativas são interessantes e são apreciadas, são desejadas. Acho que está provado agora, é que há uma certa falta de ousadia, falta de criatividade em apostar em coisas diferentes, narrativas diferentes.
Na verdade, é uma falta de ousadia muito boba porque não vai de encontro a realidade, porque as pessoas gostam do diferente. E se identificam, porque no fundo todo mundo sabe a diferença que tem, a especificidade que tem. Nós queríamos fazer com essa peça, a nossa inadequação, ser algo belo, né? Colocar a inadequação como algo bonito. Aquele dançarino, por exemplo, se não fosse uma pessoa com deficiência, não seria tão belo como aquilo foi. E a potência dele está tão fechada dentro da especificidade dele que se fosse mesmo uma outra pessoa com deficiência naquele lugar, eventualmente não seria o mesmo. E é isso que nós queremos falar, essa coisa da unicidade que representa o coletivo, porque todos nós temos uma coisa que nós julgamos ser muito específica e que não se encaixa muito bem no social, mas eventualmente esse elemento é que te agrega e que faz o teu colorido pessoal. Essas nossas diferenças tônicas, que na verdade são uma questão de diferença, porque somos todos a mesma coisa, é que torna isso mais bonito, né? Então, esse elemento do belo que sai dessa coisa do inadequado.
Até porque belo e inadequado são dois conceitos muito relativos…
Eu, por exemplo, como autor, gosto dessa perspectiva. De jogar com essas coisas que culturalmente nós achamos que são inadequadas. Trazer isso como uma coisa bela, né? A beleza é tão sequestradora. Você quando vê uma mulher expressar a sua liderança e artisticamente falando, ela é uma poetisa da existência, ela expressa a sua liderança com esse brilho. Você é sequestrado, você pode até ter os teus machismos, mas a beleza é uma coisa que te capta e te apaixona e você fala: – poças, o que é isso? E quando aquilo que é inadequado passa a ser bonito ele desarma as coisas de alguma maneira. Você depois vai voltar nos seus filtros, mas há uma fresta que abre um pouco ali no teu inconsciente, porque eu acho que o belo tem essa função. Acho que o belo tem essa coisa catártica que te dá logo uma chapada e você diz: oh, afinal isso consegue ser bonito, então é mais ou menos nesse elemento que nós trabalhamos.
Qual é a tua próxima ideia, o seu próximo projeto?
Bom, eu agora vou voltar para o universo mais musical, meu CD que vem eventualmente no próximo ano, que eu vou chamar de Liamba de Malanje, que é uma erva, que no Brasil chamam de maconha. Liamba de malange, porque Malange é a maior lavoura da liamba. Eu tento trazer essa questão da busca de mudar a percepção, porque um dos efeitos que a liamba tem é de mudar o olhar. Você começa a ver coisas ou mudas a perspectiva em relação a determinadas coisas. Abre essa possibilidade de mudar. Eu gostaria de fazer um trabalho artístico e filosófico com esse olhar da mudança de perspectiva. Então eu quero dar maconha para todo o mundo em forma de música. Esse é o meu projeto mais urgente.