Imigrantes encostados às paredes na Rua do Benformoso ofendem os valores de um Estado de Direito democrático. Mais grave, porém, é a instrumentalização política da ação policial: reforça narrativas populistas e desvirtua a própria ideia de justiça. Desrespeita o profissionalismo dos agentes, subverte os princípios democráticos e enfraquece o Estado de Direito. Portugal não é isto.
A operação policial realizada no Martim Moniz, em Lisboa, marca um capítulo sombrio na recente memória coletiva portuguesa. Sob o pretexto de combater a criminalidade, a ação protagonizada pela Polícia de Segurança Pública (PSP) expôs algo mais profundo e preocupante: o uso calculado da polícia como instrumento de espetáculo político e de manobras (pré) eleitorais. Portugal é um país historicamente reconhecido pelo seu humanismo e respeito pelos direitos humanos – não pode e não deve, por isso, reduzir-se a uma lógica de confrontação que ignora a dignidade das pessoas.
As imagens de imigrantes encostados às paredes na Rua do Benformoso, humilhados sob o olhar vigilante das autoridades, remetem para cenários que ofendem os valores de um Estado de Direito democrático. A justificação dada pela PSP, representada pelo comandante Metropolitano de Lisboa, Luís Elias, invocando “meses de planeamento” e o envolvimento do Ministério Público, é frágil e não resiste à crítica. Operações mal articuladas e de impacto prático irrelevante não podem ser mascaradas como estratégias complexas. Não há nada de estratégico em expor a vulnerabilidade de quem já vive à margem da sociedade.
Como bem sublinhou Rui Rocha, líder da Iniciativa Liberal, o verdadeiro investimento que o país precisa é no policiamento de proximidade. Não são ações espetaculares, concebidas para captar a atenção mediática e dar uma imagem de dureza das polícias para com os imigrantes, que constroem uma sociedade segura e coesa. Já o policiamento de proximidade promove a confiança entre a polícia e as comunidades, essencial para prevenir o crime e garantir a segurança de todos.
No policiamento de proximidade – de que são exemplo os programas “Escola Segura”, “Comércio Seguro”, “Idosos em Segurança” ou “Significativo Azul”, como muito bem lembrou Valentina Marcelino no Diário de Notícias – os polícias conhecem bem as pessoas com que se cruzam, muitas pelo nome. Este modelo é o oposto da “polícia espetáculo” que, ao invés de construir pontes, levanta muros sempre que encosta pessoas à parede.
Mais grave, porém, é a politização da ação policial. Quando os governos fazem das forças de segurança instrumentos para reforçar narrativas populistas ou desviar atenções de problemas reais, o prejuízo é duplo: mina-se a confiança dos cidadãos na polícia e desvirtua-se a própria ideia de justiça. Portugal com uma longa história de luta contra a opressão, não pode ceder à tentação de instrumentalizar a polícia para fins políticos.
Portugal não é isto. Portugal é muito mais. É um país que acolheu com braços abertos refugiados em fuga da guerra, que construiu uma democracia vibrante sobre os escombros de uma ditadura e que tem na sua Constituição a consagração da dignidade da pessoa humana como valor central. É inconcebível que, num contexto como este, ações policiais de caráter duvidoso sejam usadas para enviar mensagens políticas de força e de controlo.
Na sequência desta ação, a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP) afirmou há dias que os governos não devem “recorrer às polícias como arma de ação política”. Este alerta é um aviso sério que não deve ser ignorado! A instrumentalização das forças de segurança para fins políticos desrespeita o profissionalismo dos agentes, subverte os princípios democráticos e enfraquece o Estado de Direito.
Além disso, operações como a do Martim Moniz carregam uma carga simbólica pesada. Ao escolher imigrantes como alvo principal, perpetuam estereótipos e alimentam discursos xenófobos que não refletem o espírito acolhedor e integrador de Portugal. Não podemos aceitar que, em nome de supostos ganhos de segurança, sejam sacrificados os valores que definem a nossa identidade coletiva.
Portugal não é uma nação que se curva às forças do oportunismo político ou à manipulação populista. É um Estado de Direito, onde a lei não deve ser apenas aplicada, mas também defendida com ética e com respeito pelos direitos de todos. É um país humanista, que respeita a diferença e protege os mais vulneráveis, reconhecendo que a dignidade da pessoa humana está acima de quaisquer interesses políticos circunstanciais.
Ao assistir a operações como a do Martim Moniz, os portugueses devem questionar: é este o país que queremos? Um país onde a força se sobrepõe ao diálogo, onde a espetacularização substitui a estratégia e onde a tática política se sobrepõe à ética? Se a resposta for “não”, então é urgente resistir a estas práticas e reafirmar os valores que nos definem como nação.
Portugal não deve permitir que o calculismo político o desvie de sua rota. A dignidade humana, o respeito pela diferença e a defesa do Estado de Direito são mais do que princípios: são a base sobre a qual se constrói o futuro. O primeiro-ministro Luís Montenegro parece ter percebido isso quando deu o dito por não dito em entrevista ao DN, corrigindo as suas declarações iniciais sobre a operação no Martim Moniz e afirmando que “devemos olhar para os imigrantes como novos portugueses”.
Melhor assim.
crédito foto: Lusa/Rodrigo Cabrita