O Portal Vozes entrevistou com exclusividade o rapper Xullaji que fala sobre sua música e suas lutas antirracista, antiimperialista, antimachista e antifascista
Por Lina Moscoso, Lisboa
Utilizando o pensamento pan-africanista, e, portanto, trazendo referências de teóricos como Amílcar Cabral, James Baldwin, Franz Fanon, Kwame Nkrumah e outros, Nuno Santos, que prefere ser chamado de Xullaji, nome do seu outro projeto, lançou, no dia 23 de setembro, o álbum Prétu 1 – Xei di Kor, do projeto Prétu. Xullaji expressa no rap e no hip hop suas lutas antirracista, antiimperialista, antimachista e antifascista, fazendo música de intervenção, que é . Nos seus projetos fala sobre as questões sociais que afligem sobretudo as pessoas periferizadas e excluídas do sistema, imigrantes, filhos e netos de imigrantes das ex-colônias. Xullaji define o que é fazer cultura negra em Portugal: “A nossa música é o nosso megafone, visto que a nossa luta não tem outro espaço de voz”.
Você acabou de lançar um álbum do projeto Prétu. Prétu é um “projeto de difusão de pensamento político pan-africanista”. Como você define Prétu? O que temos de pan-africanismo em Prétu?
Bem, primeiro, eu acho que tudo que me influenciou sempre como música e rapper foi, ainda que inconscientemente, ao início, o pensamento pan-africanista, sem saber ainda como é que se chamava. Mas quando eu comecei a ouvir pessoas a falarem da realidade que eu vivia, como Kwame Nkrumah ou Carl Cloete e outros, ainda que eu nem escrevesse. Nesta esfera, que é o pensamento pan-africanista, esses pensamentos já lá estavam até porque o pensamento pan-africanista, apesar de ter começado há um século e tal, é um pensamento sempre em construção. Por exemplo, é um pensamento que está em alta discussão. O que é o pan-africanismo hoje? Como é que o pan-africanismo engloba questões atuais que se pensa, como a questão ecológica, a questão LGBTQUIA e outras questões. Portanto, o pan-africanismo está sempre a evoluir.
Eu, desde miúdo, acho que aquilo que me foi influenciando politicamente quando eu cresci foi perceber o que era o pensamento pan-africanista. Então eu acho que mesmo no projeto rap Xullaji isso já lá estava naquela que era abordagem antirracista, antiimperialista, anti-manchista, antipatriarcal, anticapitalista da minha música. Ainda que no início eu não sabia dar esses nomes, mas já lá estava um olhar para a sociedade entender e eu não concordo com isso, não concordo com esta exploração. Eu não concordo que eu falo com a minha mãe acorda de manhã e chega a noite e teve a limpar a casa de uma portuguesa portanto e tu vais te instruindo e isso há um momento em que tu percebes que o que lá está encaixa-se num pensamento mais vasto, que é o pensamento pan africanista, que é um pensamento que é a África e a sua diáspora.
Nesse sentido, nós cabo-verdianos e guineenses quando nos incluímos num pensamento cabralista – refere-se ao teórico guineense Amílcar Cabral, que era assumidamente um pan-africanista – entramos nessa linha anti- imperialista, anti exploração do homem pelo homem. Então acho que a minha música tinha isto no Prétu e o álbum que se chama “Prétu 1 – Xei di Kor” foi criado para tentar pensar essa linha de uma forma mais assumida e também tentar chegar a outros pan-africanistas.
Esse álbum fala muito mais por exemplo “a luta continua”. Outras músicas falam muito mais da questão da deslocalização, ou seja, da maneira como a economia em África é destruída. Sobre como nos colocam nestes pontos onde somos vistos como não gente e como é que é construir uma afrotopia, usando o termo de Felwine Sarr?
Como é que podemos, mesmo que seja dentro das nossas cabeças, regressar a um sítio que somos forçados, a uma diáspora assassina? Porque as fronteiras são militarizadas, as travessias do deserto e do mar são militarizadas, são percursos de morte e a própria estadia na Europa ou na América é uma estadia muito mais pautada pelo brutalismo, como diz Achille Mbembe, do que propriamente por uma boa estadia. Então é um pensamento nessa reflexão e é também um álbum que pensa essa questão do Baldwin (James Baldwin) “I am not your negro” – documentário.
Como reconstruir uma personalidade negra como Amílcar Cabral diria: como reafricanizar o nosso espírito, só que reafricanizar o espírito não pode ser ocupar um lugar ao sol na estrutura capitalista, que é racista. Porque ocupar um lugar no capitalismo ou no neoliberalismo não é estar bem. Tem que ser colocado isso em questão. Então a branquitude construiu a negritude como o seu espelho negativo. Tudo o que a branquitude via em si como mal chamou de negro.
A proposta muito influenciada pelo Baldwin e também pelo Fanon (Franz Fanon) e pelo Cabral é dizer: vamos construir uma maneira de ser uma pessoa preta que não se encaixa nessa contra-construção. Porque também há muitos movimentos antirracistas que se constroem numa contra-afirmação. A proposta do Prétu é construir do zero. É Prétu, em crioulo, que falamos com orgulho. Vamos pegar essa palavra, baralhar e tornar e construí-la num outro ideário. E o álbum tá cheio disso. Não é um álbum romântico. Ele passa por várias fases. Ele fala das questões da travessia do Mediterrâneo, das prisões no complexo regional militar, mas depois pouco a pouco vai se transformando. Até que o álbum acaba na revolução que não vai ser no Twitter.
Imagina eu vinha de uma esfera de hip hop, de rap propriamente dito, cantado assim mais no boombep. Não tive muita coragem de assumir esse projeto que era diferente porque trabalhava a sonoridade africana e não a sonoridade afro-americana que são duas coisas diferentes. Então a proposta foi se desenvolvendo ao longo dos anos até que quando eu voltei de Londres, em 2016, levei mais a sério a possibilidade de poder gravar letras em cima de uma série de instrumentais que eu tinha produzido desde 2012 para cá e tinha uma influência africana, porque os samples que eu usava eram africanos. Em 2019, eu lancei o primeiro single, depois, em 2020, lancei um outro. Acho que foi um single por ano até que resolvi depois lançar isto, mas fomos tocando muito, demos muito concertos. Eu acho que o álbum amadureceu com os concertos, com os músicos que passaram, com o trabalho, e também com a influência que o teatro tem na construção disso.
Você falava sobre Amílcar Cabral sobre o “novo homem africano” – falar de uma nova entidade e identidade que tem de surgir de nós, homens e mulheres africanos, livre do preto e do branco que o branco construiu dentro da nossa cabeça – nas definições do projeto Prétu. Você acha que é preciso sair das causas identitárias para construir uma luta, por exemplo, a antirracista ?
Eu sou uma pessoa que, desde que estou na luta, luto pela questão de identidade porque a identidade é uma coisa que nos foi retirada.
Então, eu não acredito que a gente tem que sair da questão identitária porque nós, acima de tudo, somos pessoas negras ou somos mulheres ou somos pessoas LGBTQUIA e isso cria logo em cima uma desvantagem. O que eu digo é que o neoliberalismo está a aproveitar-se do identitarismo para criar uma espécie de individualismo, que é uma proposta política individual e não coletiva. As identidades não foram construídas só para nós usarmos como uma espécie de medalha de integração no sistema neoliberal.
Os que saem da África à procura de uma vida melhor é uma coletividade de seres que são expropriados da sua terra e depois não podemos apontar o dedo àquele que conseguiu atravessar e tornou-se um caso de sucesso, porque muitos outros morreram. É contra este discurso meritocrático de ocupar o lugar. A proposta neoliberal é: vamos abrir a porta a um para fechar para um milhão. Eu não sou nada contra o discurso identitário, pelo contrário, eu lutei muito tempo nisso. O que eu estou a dizer é, como Marx dizia, o capitalismo engole a sua própria opressão, regurgita e põe ao seu favor e é o que o neoliberalismo está a fazer atualmente, especialmente depois de George Floyd. É pegar nesses identitarismos e pô-los a seu favor como uma ferramenta de integração. Só que nós não podemos nos integrar ao sistema capitalista de uma forma não crítica.
As causas identitárias acabam por ser esvaziadas e levadas para o lado do exotismo e das questões religiosas?
O problema é que nem sequer há uma abordagem às questões de identidade como elas são. A questão de classe está em todas. É uma superficialização, uma exotização, e um esvaziamento e isso tem enfraquecido a luta. A esquerda invisibiliza também as questões de raça. Só que agora a própria direita que agarrou aí para visibilizar de uma maneira individualista não de uma maneira coletiva e o fim do coletivismo é o fim da luta da esquerda. A individualização e a atomização dos problemas têm destruído a possibilidade de mobilização e essa possibilidade só pode ser coletiva contra este regime.
E é preciso ter cuidado aquele que eu não sou nada contra a questão identitária. Até porque a luta que se fez, a luta que as mulheres fizeram, a luta que as pessoas fizeram contra a homofobia, a sua luta que as pessoas tiveram contra a transfobia, a luta com os negros e negras fizeram contra o racismo e a luta que as pessoas têm feito contra o imperialismo não se pode esvaizar da maneira que está a ser feita agora. A luta é pôr em causa o sistema racista e imperialista que explora umas pessoas para o benefício de outras. Mas acho que a esquerda toda tem que se repensar no sentido de que não se pode abolir as identidades.
E o projeto Xullaji, como é que você define? Quais são as diferenças do Prétu para Xullaji?
É uma diferença sônica para já porque no Xullaji a musicalidade é o rap puro e duro, embora eu já esteja a gravar um álbum do Xullaji neste momento que gostava de lançar para o ano por causa destas questões políticas. Eu normalmente lanço os álbuns perto de abril e tem a ver com o discurso político, tem a ver com Portugal. É uma coisa que tem a ver com crescer nesse país, crescer num gueto, crescer num bairro. A cadência é: eu canto muito mais em português.
É um projeto cadenciado no hip hop, embora a maneira como a gente está a gravar atualmente começamos a receber outras influências também. O Prétu tem outros ritmos. Tem ritmo africano, o BPM é mais rápido, o espaço é mais livre. Eu nunca sei como é que vai acabar uma música do Prétu porque começo a produzir e vou experimentando coisas até chegar ali e depois, a partir dali, faço a letra. No projeto Xullaji normalmente eu tenho uma letra e vou atrás de um beat. Eu estou sempre a escrever. Eu vou no autocarro, vejo uma situação e vou escrevendo e depois realmente vou atrás de um beat. Tem a ver com ir buscar as minhas influências africanas.
Você utiliza a língua portuguesa e o crioulo de Cabo Verde nas suas músicas. Como você usa essas línguas?
Eu uso o português porque é a língua deste país é a língua com que eu falo com outros africanos, que são moçambicanos, guineenses, angolanos, timorenses, portanto, eu falo como uma língua, como Cabral dizia quando foi criticado pelo fato de escrever em português e não nas cento e tal línguas da Guiné ou em crioulo como uma língua que unificava os povos todos da Guiné. Isto é uma questão pragmática.
Já em Xullaji, o rap é em crioulo porque eu sou naturalmente bilíngue. Eu aqui nesta casa e já antes de os meus pais falecerem, nós sempre falamos as duas línguas e não temos um momento em que cortamos de uma para outra. Os meus dois filhos mais velhos também cresceram em Cabo Verde. E nós falamos as duas línguas assim. Eu até tenho uma coisa que irrita um bocado que é falar assim em português por europeu e português do Brasil e depois não se falarem em português de Cabo Verde, de Angola, de Moçambique. Se a questão é usar as palavras próprias e o sotaque e as características próprias de cada maneira de falar português, nós temos um português de Cabo Verde. Agora mais que isso é usar a sua própria língua, que é cabo-verdiano. As pessoas chamam de crioulo, mas é cabo-verdiano, crioulo cabo-verdiano. Nesse sentido, existe também naquele país uma esquizofrenia de falar as duas línguas porque o colonizador deixou lá esta língua. E está a haver essa luta de tentar escrever cada vez mais em cabo-verdiano. Espalhar essa língua para que se possa construir a literatura em cabo-verdiano, o que já há. No caso de Portugal, o crioulo é a segunda língua mais falada em Lisboa, embora seja um crioulo já muito aportuguesado. A preservação dessa língua é um ato de resistência. Mas o crioulo não está nada ameaçado de se perder, pelo contrário, afirma-se, a questão é quando é que se poderá institucionalizar como uma língua sendo um país pequeno?
Por outro lado, sinto que a música cabo-verdiana em Portugal está a se tornar moda. O crioulo está a ser um bocado pilhado e apropriado. Já tens a Madonna a cantar crioulo e, portanto, há um perigo também no sentido esvaziar essa língua.
Você está no movimento Vida Justa. A habitação é uma questão das mais urgentes atualmente. Você costuma juntar as suas lutas, atuando em várias frentes?
Houve uma altura, enquanto rapper, que eu percebi que falar é falar, agir é agir. A Associação Capaz foi a primeira associação assumida, em 2003, como associação antirracista de afrodescentes em Portugal. Uma associação formada mesmo por afrodescendentes e que se assumia como tal. E desde essa altura, depois juntando com outras frentes de luta, fomos criando uma plataforma que é uma mobilização feita entre rappers que faziam muito mais do que cantar, agiam, e que muitas vezes até o cantar era a segunda ferramenta o agir era a primeira. Acho que sempre fiz isso, embora, não seja uma pessoa que quer estar à frente das coisas e muito menos hoje em dia que é um movimento de individualismo vaidoso. Mas na comunidade posso dizer que sempre tive a associação com altos e baixos sempre a trabalhar. Peles Negras, Máscaras Negras, coletivo de teatro, tem um espaço aberto que é auto financiado. Estamos sempre a trabalhar na cultura como ferramenta de mobilização e de luta. Aliás, até o nosso envolvimento na Vida Justa é uma música ao serviço da luta. Eu não tenho nem sequer interesse em fazer mais que isso.
Minha música é o que Cabral dizia que é resistência cultural. Cabral tinha bem definido: existem a resistência política, a resistência militar, a resistência econômica e a resistência cultural. A nossa música é a resistência cultural. A nossa música é o nosso megafone, visto que a nossa luta não tem outro espaço de voz e no meu caso ganhou espaço nesse sentido. Por exemplo, o ” Sonhei que no meu bairro íamos matar o Colombo” é uma música que eu lancei recentemente, mas como Xullaji. Ela estava já a falar das questões de habitação. Não tenho nenhuma música que fuja dessas questões. Tem uma diferença estética, mas a letra é muito focada porque é para nós um objeto resistência cultural. O teatro no coletivo é um objeto de resistência cultural também.
Você disse que a mercantilização da cultura negra é altamente rentável, onde é que você coloca essa cultura negra em Portugal? Qual é o espaço que existe?
Nos anos 80 e 90, o hip hop estava nas periferias. Não havia hip hop nem no centro cultural, que é Lisboa, nem no centro industrial. Quem trouxe o funaná, quem trouxe o afro, quem trouxe o kuduro foram as pessoas imigrantes e filhos de imigrantes que vieram trabalhar a baixo custo, serem exploradas e maltratadas e essa música veio com essas pessoas e com os seus filhos. A música eletrônica africana instalou-se com os filhos dos africanos e o semba e o funaná. E estamos a assistir a um aumento do expressar do racismo, da legitimação, da estruturação e maior ainda da institucionalização do racismo, mas ao mesmo tempo que isso acontece essa apreciação da música africana e da ideia de Gilberto Freyre do lusotropicalismo: desta Lisboa que é uma Lisboa muito tropical. Isso é uma enorme falácia.
Existe uma parte da cultura africana que é levada para criar essa ideia de uma Lisboa integradora. Mas se você for entender a forma como as pessoas viveram e vivem nas periferias isso não é uma verdade.
O ódio que existe por essas pessoas, os discursos cada vez mais odiosos contra essas pessoas. As mesmas pessoas que votam no Chega vão dançar kizomba. Não pode! Há pessoas que vão ouvir hip hop e vão votar no Chega. Com toda a beleza e grandeza também da cultura portuguesa, mas a cultura africana veio engrandecer Lisboa e a cidade tem se estruturado a vender bilhetes de avião para turistas camones com o seu tropicalismo. Temos que entender o discurso econômico. Ver em quais condições as pessoas estão a morar. As pessoas que moravam aqui no meu bairro pagavam 200 e tal euros agora estão a pagar 700, 800 euros. Vai ver os hospitais onde as pessoas vão, vai ver os transportes que essas pessoas apanham, vai ver quem sai é 5:30 às 6, ou seja, não podemos só falar da música e não falar de tudo aquilo que forma essa música quando você fala do afro. Vai ver o pessoal que faz música na Quinta do Mocho que cresceu assim com aquela força e de repente não pode ser considerada uma música portuguesa. Então tem que se considerar todos os miúdos que nasceram em Portugal como portugueses, em vez de terem que passar dificuldades para poderem ter uma nacionalidade ou às vezes até uma residência. E viverem ameaçados se fizerem alguma coisa tem que ser mandados para sua terra quando nasceram aqui. Então se vamos abarcar essa “portuguesidade” da música africana, tem que se assumir que essas pessoas africanas que vivem neste território são também portugueses e não é só procurar essas pessoas uma cultura altamente rentável, porque a questão não se fala é quantos milhares de euros que essa cultura gera. A cultura é neste momento é uma coisa extrativizada de uma maneira monocultura. Agora vamos aqui roubar o funaná, depois o kuduro até não haver mais e depois cospem e passam para outro chão.
Quem é que consome hoje a sua música, consome no sentido de: para quem você está a falar nesse momento?
É difícil. Por um lado, em Xullaji eu conheço mais ou menos o meu público: é um público para já que gosta de rap e gosta de chamar de liricismo e gosta deste rap também político de linha dura. Por um lado, as pessoas como as que cresceram nessas periferias, mas depois também há várias outras pessoas não negras que cresceram nas outras periferias. Pessoas que ouvem Xullaji e que dão muita força e identificam-se políticamente com isso. O Prétu eu não ainda não sei muito bem quem ouve. É uma coisa que está a ser construída.