A cidade está caracterizada por um espaço urbano marcado pela colonialidade portuguesa
Por Lina Moscoso, Lisboa.
Andar por Lisboa pode ser uma experiência de retorno ao passado colonial português. A cidade está repleta de monumentos, nomes de ruas, estátuas, praças e outros equipamentos que lembram o período da colonização dos países da África, Ásia e do Brasil.
Os arranjos espaciais e de morfologias sociais de Lisboa foram institucionalizados pelo colonialismo. O modo como foi constituído o espaço urbano da cidade ainda hoje – no pós-colonialismo – exerce influência na construção e na sustentação da narrativa da identidade nacional portuguesa.
Em Belém, o Padrão dos Descobrimentos enaltece a época das grandes navegações em que os portugueses eram os heróis dos “descobrimentos”, erguido em 1940 por ocasião da Exposição do Mundo Português para homenagear as figuras históricas envolvidas nas grandes navegações.
O Jardim da Praça do Império, localizado em Belém (bairro), foi recentemente reformado e lá foram colocados brasões de Mercê Antiga ou Nova pertencentes ou atribuídos a navegadores durante o período dos descobrimentos. São 30 brasões florais representando os 18 distritos portugueses, os arquipélagos e as ex-colônias, a que se juntaram ainda as cruzes de Cristo e Avis. Há ainda um escudo nacional.
O Museu do Tesouro Real guarda as joias da Coroa portuguesa extraídas das ex-colônias. Já o Monumento aos Combatentes do Ultramar, localizado em Belém, foi criado para homenagear todos os militares que combateram na Guerra de África (1961-1974), em defesa da Pátria.
Lisboa está caracterizada por um espaço urbano bastante marcado pela colonização portuguesa, como afirma Aurora Almada, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. “No lugar de memoriais às vítimas das guerras coloniais estão os monumentos de enaltecimento dos heróis portugueses dessas guerras”, pontua.
Aurora lembra que a caracterização de Lisboa se dá através do enaltecimento da dominação colonial portuguesa. “Nós encontramos aqui na cidade e no resto de Portugal monumentos, espaços, toponímias, que nos remetem tanto para a expansão colonial como depois para a colonização no século XIX, mas, curiosamente, não encontramos nada ou encontramos muito pouco relativamente à descolonização ou relativamente àquilo que são os aspectos negativos da colonização portuguesa. Não encontramos referências, por exemplo, à escravatura”, alerta.
Para ela, o vangloriar da expansão e da colonização portuguesa é resultado direto da instrumentalização da história portuguesa que foi feita pela monarquia laboral, pela Primeira República, ou mais recentemente pelo Estado Novo e “cuja herança nós ainda sentimos aqui na sociedade portuguesa ainda atualmente, passados 50 anos da descolonização”. Essa instrumentalização acabou por tornar o período da expansão o período áureo da história portuguesa e durante muito tempo associou os destinos de Portugal à manutenção do Império na África. “É por isso que na mente das pessoas perdura uma imagem muito positiva de figuras, por exemplo, como Dom Afonso Henriques” Denominado de “Conquistador” e “Rei Fundador”, Dom Afonso Henriques foi o primeiro Rei de Portugal. No país, há nomes de ruas, avenidas e pontes em homenagem ao antigo rei.
Refazendo os mapas de Lisboa
Para romper com a narrativa colonial que é contada sob o ponto de vista dos colonizadores, surgiu, em 2018, uma iniciativa do Goethe-Institut, em Lisboa, chamada ReMapping Memories Lisboa-Hamburg: Lugares de Memória (Pós)Coloniais, que recria, através de textos, artigos, entrevistas e obras gráficas, novos mapas das cidades, contextualizando lugares de memória e repensando a relação dessas memórias com o colonialismo, a resistência anticolonial e a presença africana, de maneira a inscrever outras histórias na memória coletiva e a encontrar estratégias de descolonização das cidades.
O ReMapping Memories compara as cidades de Lisboa e Hamburgo, na Alemanha, no que diz respeito aos vestígios e monumentos, coloniais e pós-coloniais, e que era boa ideia envolver no projeto uma série de pessoas de áreas diversas que refletem ou trabalham sobre estas questões.
Segregação espacial
Ainda sobre território urbano, Lisboa também tem uma visível segregação espacial. “Isto é sem dúvida, em grande parte, uma consequência daquilo que foi a participação de Portugal na expansão colonial”, diz a investigadora Aurora Almada. Portugal enquanto antiga potência metropolitana acabou por receber muitas pessoas provenientes das antigas colônias que eram vítimas de inúmeras discriminações. O racismo acaba por expulsar as pessoas de Lisboa enquanto cidade, e as leva para as áreas periféricas da Grande Lisboa.
Essa configuração da sociedade reflete no dia a dia das pessoas, a exemplo dos imigrantes, como destaca a investigadora. “As comunidades imigrantes estão circunscritas a determinadas as áreas dentro da cidade de Lisboa, nomeadamente à zona da Mouraria e do Martim Moniz” ou estão localizadas nos bairros mais afastados do Centro, como Amadora.
Além disso, as universidades são espaços fechados aos quais a segunda geração ou terceira geração de imigrantes e os imigrantes africanos não conseguem ter acesso porque o número daqueles que chegam à universidade é muito reduzido, conforme a investigadora.
Espaço de memória
Relativamente à reparação histórica de Portugal para com as ex-colônias em virtude da escravização, Aurora Almada observa que os portugueses não falam sobre essa temática. No ensino não há discussão sobre a escravatura e a comunicação social raramente fala. “Portanto, não é um tema para o qual as pessoas são despertas, mas que é necessário falar. Portanto, eu acho que esse é o grande problema são os silêncios que existem aqui na sociedade portuguesa. Não se fala dos assuntos e essa memória que deveria ter passado de geração em geração não foi construída”, argumenta. O primeiro passo, para a investigadora, deve ser o de criar um espaço de debate na sociedade portuguesa em torno desses temas.
Sobre as soluções, Aurora acha muito difícil haver um debate aprofundado e a consequente aplicação de medidas de ação contra o racismo porque “não há aqui vontade da sociedade portuguesa e há uma amnésia aqui na sociedade portuguesa em relação ao passado e isso só podemos combater insistindo em criar um espaço de debate que não fique fechado somente entre as comunidades imigrantes, mas abranja também os portugueses”, comenta.
No entanto, o processo de descolonização está acontecendo no contexto das discussões e das lutas do movimento negro – nascido em 1911 através do surgimento de organizações e de jornais para combater o racismo – e dos imigrantes em Portugal, visto que a colonialidade não é inerte e impassível de transformação. Assim, movimentos pós-coloniais, que também incluem estudos acadêmicos, buscam romper com a história eurocêntrica que evidencia as relações de poder que estão por trás da produção de conhecimento e naturalizam as ideias de inferioridade dos países que anteriormente eram colônias.
Alinhadas com o movimento de decolonização, acontecem ações de memorialização contra-hegemônicas, ou seja, a reclamação da construção de uma memória justa e inclusiva para os povos que foram colonizados e não ao contrário como acontece hoje. Nesse sentido, associações de afrodescendentes têm lutado para construir espaços de memórias para as vítimas.
Homenagem às vítimas
Um exemplo de construção de um novo tipo de memória, que está na contramão dos investimentos que enaltecem os processos de colonização e de escravização do Império português, a Djass – Associação de Afrodescendentes – propôs a criação do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas – Lisboa. O projeto foi proposto ao Orçamento Participativo de Lisboa (OP) em 2017. No dia 27 de novembro de 2017, a proposta foi anunciada como um dos projetos vencedores daquela iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa (CML), que o incluiu no seu orçamento. No entanto, nunca saiu do papel.
O objetivo da proposta foi o de romper com a inexistência, na capital do país, de quaisquer monumentos ou equipamentos que evoquem especificamente a relação histórica de Portugal com a escravatura e o tráfico de pessoas escravizadas e ilustrem os seus legados, que é lidar com o passado com o sentimento de reparação e construção da memória por outra via e não através da narrativa hegemônica glorificadora do império colonial.
O memorial projetado por Kiluanji Kia Henda (Luanda, Angola) representa uma plantação de 400 canas-de-açúcar queimadas, como símbolo de resistência das pessoas escravizadas. Distribuídas pelo terreno disponibilizado, que tem forma triangular, o número de canas representa simbolicamente o número de anos de escravatura transcontinental entre África, Brasil e Portugal.