Por Jamil Chade.
O português não é mais uma língua europeia. E isso é um fato. A constatação é de Kalaf Epalanga, o escritor e músico angolano. Ele acaba de encerrar um evento em São Paulo e, de volta à Europa onde reside, não esconde o êxtase do encontro entre africanos e brasileiros.
Ele foi um dos responsáveis e fundadores do Kizomba Design Museum junto com diretor criativo e artista multidisciplinar Nástio Mosquito, centro dedicado à preservação da história da cultura kizomba. Na capital paulistana, a experiência ocorreu entre os dias 6 e 8 de setembro, como parte da semana de abertura da 35ª edição da Bienal de São Paulo.
Afônico, com voz afetada e afirmando que ainda estava procurando palavras para entender o tsunami que havia vivido no Brasil, o escritor falou ao Portal Vozes sobre o futuro da língua portuguesa, da relação entre Brasil e África e da profunda mudança no cenário mundial.
Usando dados estatísticos, Kalaf aponta que, em 2100, o conjunto dos países falantes de português em África irá superar a população brasileira. De fato, hoje mesmo ele insiste que “a língua portuguesa já não é uma língua europeia”. “Isso é um fato. E se não é uma língua europeia, é uma língua de quem? Quem trabalha essa língua? Somos nós, os povos ex-colonizados”, afirmou o escritor que, em breve, lança pela Todavia seu novo livro “Minha Pátria é a Língua Pretuguesa”.
“Quando debatemos a língua, precisamos discutir quem é que está falando”, destacou o poeta e cronista angolano radicado hoje em Berlim. Ou, como escreveu recentemente José Eduardo Agualusa, Kalaf é uma espécie de “ministro da Kizomba”.
Eis os principais trechos da entrevista:
Chade – Como foi a experiência de levar teu projeto para São Paulo?
Kalaf – Ainda estou buscando as palavras. Foi muito emocionante. Para começar, por termos conseguido reunir a comunidade de falantes de português. A nossa primeira missão era reunir artistas e pensadores da comunidade que nunca estiveram juntos na mesma sala. Trouxemos artistas de várias gerações, várias áreas. De design até literatura ou música.
Estar quatro dias com essas pessoas falando de algo que é entendido nos grandes salões da cultura como algo periférico, subalterno, foi muito emocionante. A grande dádiva foi ver a cidade de São Paulo, e o Brasil, disponíveis. A abraçar, quase como se estivessem num reencontro. Quase como se não fosse uma novidade. Todas aquelas ideias tocavam num lugar muito familiar, por isso as pessoas estavam muito encantadas com o que ocorria ali.
Um outro momento foi o fato de estar acontecendo na semana da Bienal, que abriu uma audiência internacional. Todos tentando entender que essa língua que falamos ultrapassou a ideia da herança colonial que ela representa, da dor que ela carrega também. É possível construir uma ideia de nação, de comunidade, que seja realmente pensada para um futuro melhor. Isso foi possível. Mostrou-se um caminho.
Chade – Qual a diferença fazer esse evento em Lisboa e em São Paulo?
Kalaf – Em Lisboa, santo de casa não faz milagre. Isso está muito presente em Lisboa. Muito do que eu escrevo nasce da certeza de que essa é uma experiência plural. Junta todos. Portugal não pode esquecer um fator importante; aqueles portugueses que retornaram da África em 1975 modificaram a sociedade. Houve um contributo concreto sobre a experiência africana trazida por essas pessoas. Deturpada talvez. Não é a minha experiência africana. Mas ainda assim não deixa de ser válida. Não posso anular a experiência dessas pessoas.
Eles viveram na África, tiveram seus filhos la e trouxeram elementos. Mas viviam num limbo entre a Europa de seus avós e uma África que os marcou para sempre. Essas pessoas é que construíram essa identidade nova em Portugal.
Esse viver, nos grandes centros urbanos, mostrou que existe uma identidade que não se relaciona com os grandes exploradores e os heróis que Portugal celebra como pico de sua evolução histórica. Mas sim pela experiência humana, pela vida concreta da vida das pessoas, muitas delas invisibilizadas – brancos e negros – pela questão de gênero e raça.
As pessoas estão construindo um Portugal pujante e rico. Mas que não está presente nos grandes espaços da intelectualidade.
E no Brasil?
O Brasil tem feito esse processo de requalificar esses símbolos culturais há muito tempo. Claro que há resistência e as coisas não são simples. Até a Bossa Nova, que poderia ir para um lugar elitista, sempre teve a preocupação de assinalar que o que faziam era samba.
Isso mostra que, para construir um país, ninguém pode ficar de fora. Todos precisam participar. O que eu vi em São Paulo foi essa prova. Se esse processo de envolvimento ocorrer e estivermos disponíveis a incluir a todos, vamos ter uma surpresa formidável.
Você diz que ela vem repleta de história de violência. Mas ela tem outro significado hoje. Como ocorreu isso? Como tivemos essa capacidade de nos desvencilhar dessa carga para se transformar em algo novo? E o que seria esse “novo”?
Em meu novo livro – Minha Pátria é a Língua Pretuguesa – trago essa ideia e conceito que Lélia Gonzales nos ofereceu. Essa questão já estava presente há muito tempo. Meu avô já falava sobre isso. O falar à preto era uma coisa que o mundo desdenhava. Esse povo que os colonizadores encontraram falavam outras línguas. Meus avôs são bilíngues. Falam duas ou três línguas de Angola, e mais o português. Se colocarmos um estrangeiro para falar português, ele vai dar caneladas. Mas isso não anula sua intelectualidade e nem seu conhecimento e subjetividade.
E isso é importante que possamos relembrar constantemente. O fato de alguém não conhecer de forma exata não significa que não tenha algo a compartilhar conosco.
Há uma outra camada, por eu ser provocador. Em 2100, o conjunto dos países falantes de português em África irá superar a população brasileira. Até o final do século, a população africana que fala português estará perto dos 300 milhões. Isso é muito sério.
De fato, quando olhamos 200 milhões no Brasil, mais 34 milhões em Angola, 32 milhões em Moçambique mais Cabo Verde e sua diáspora espalhada no mundo, começamos a entender que a língua portuguesa já não é uma língua europeia. Isso é um fato. E se não é uma língua europeia, é uma língua de quem? Quem trabalha essa língua? Somos nós, os povos ex-colonizados.
E qual tua opinião sobre essa nova realidade?
Quando debatemos a língua, precisamos discutir quem é que está falando. Ao longo do tempo, as coisas começam a mudar de figura. Ninguém vai conseguir dizer a um brasileiro que o que ele fala não é brasileiro. Estamos vendo essa mudança. No exterior, os alunos estrangeiros de língua portuguesa. distinguem essa língua e dizem que estão aprendendo brasileiro. Como isso será tratado no futuro? Hoje, nos canais de streaming, as dublagens são em brasileiro.
Podemos estar aqui tentando adiar essa conversa ou tapar o sol com a peneira, mas o fato é que estamos caminhando para isso.
Quando eu escrevo e faço essas provocações, é um convite para nos olharmos e nos vermos dessa forma. Como será em 50 anos? Como nossa cultura será vivida? Estamos falando muito sobre a importância de o Sul interagir entre si, sem a intermediação do Norte. Existem muitas resistências a isso. Mas o fato é que estamos caminhando para um lugar.
Chade – Há um terremoto de fato ocorrendo e o chão apenas vai parar de tremer quando as placas tectônicas estiverem em uma nova posição no mundo. Há um grupo que ainda pensa que pode parar o terremoto.
Kafal – Não, não podemos. Mas essa conversa não pode ser só econômica. A cultura precisa estar na linha de frente. Sabemos que há quem teme a cultura, que a cultura é uma forma de alimentar as vozes de oposição.
Mas há quem esteja olhando para essa dimensão cultural e a visita de Lula para Angola, recentemente, esteve carregada de símbolos. Ele agradeceu artistas, citou poetas. Isso é muito importante.
O que vejo é que há um sentido de urgência na retomada dessa relação entre Brasil e África. Eu mesmo estou dando esse sentido de urgência. Estamos vendo o Ocidente se tornando fascista. Isso é inevitável. As democracias estão com suas populações envelhecendo e essa camada é mais conservadora.
Chade – Tenho visto que, com essa nova realidade, o movimento da língua portuguesa e a transformação política, há um ressentimento entre os portugueses. Como fazer para lidar com isso?
Não é nossa responsabilidade. Por mais que eu seja agregador, conciliador. Mas isso não é nossa responsabilidade. Eles precisam se procurar, fazer uma viagem interior, se curar de alguma forma. É inevitável e o mundo está andando muito rapidamente.
As mudanças que estão ocorrendo no plano global vão atingir a todos. Eu já escolhi o meu lugar e estou dizendo a toda minha comunidade: é importante estar no Brasil. Não como turista. Mas como agente ativo. Da mesma forma que o mundo anglo-saxão olha para Nova Iorque, para mim São Paulo representa isso.
Nós precisamos do Brasil e o Brasil precisa de nós.