Por Samantha Buglione.
A cidade de São Paulo parece ter sido sede de um encontro de mestiços, uma avant-première da primavera neste início de setembro, mas crioula. De um lado da Avenida Paulista, dentro dos contornos do Parque Ibirapuera, um dos herdeiros da delicadeza de Burle Marx, acontecia a 35ª Bienal de Arte Contemporânea; em outro, lá no edifício Copan, outra obra de arte da arquitetura de Niemeyer, o primeiro Kizomba Design Museum (www.kizombadesignmuseaum), de Kalaf Epalanga e Nastio Mosquito.
Se a Kizomba é um ritmo criado em Angola com influência da música do Congo, da Caribenha (com ritmos como o Cadance, o Calipso e o Zouk), do Semba e Rumba angolanos, Plena, entre outros, como explica o músico Paulo Flores, o encontro em São Paulo foi brasileiro. Um brasileiro adjetivo, sinônimo de mestiço. Filho de muitos, de etnias e de histórias distintas. Mistura de sons e gentes. Marissa Moorman, no seu último livro, Os sons da Nação, descortina a história e as tensões da música urbana de Luanda e dialoga com a língua brasileira de Tom Zé quando mostra que um som, seja da música, seja da língua, não é só um som. Ele nos molda.
A música nos afeta, alarga sensações e perspectivas, nos faz perceber nossos desejos e mudar demandas e quereres. Quem nunca ouviu: “não chora, não chora, xé menino não fala política”, estivesse em Angola ou no Brasil? Quem nunca colocou o radinho perto das orelhas ou esticou o corpo todo para ouvir uma música proibida? Nada é tão disruptivo quanto um corpo capaz de sentir a si mesmo. Há uma insubordinação num corpo que sente e numa voz que ecoa.
O que somos, afinal, senão filhos e filhas dos ritmos das misturas, o “pretu ku branku”, a geração de ouro, cantada por Dino d’Santiago? O embalo de um colo de mãe, a cantiga de uma avó, a marcha ensinada por um pai? Quanta sorte a dos filhos que viram seus pais num enlace de dança. A vida é possível, há de pensar.
Não me arriscaria a comparar a Kizomba com a Gafieira carioca, ou a Milonga do sul, nem com o Repente do norte porque me falta repertório, mas confesso que, nos dias que antecederam minha ida a São Paulo, ritmos da minha infância me visitaram enquanto ouvia Eduardo Paim, Paulo Flores, Dino d’Santiago e Yuliana Ruano. Chegando lá eu entendi. A Kizomba é mais que uma dança, ela tornou-se um caminho, um fio de contar histórias.
A geração de ouro também está nas histórias criadas, sem elas não há sentido, o de caminho e o de sentir. Uma mistura de sons e de sangue. São os ditos sobre nós, para nós e os ditos por nós (os benditos e os malditos) que nos singularizam. É o desafiador exercício de desobedecer às narrativas criadas e impostas e, ao custo de muito empenho, criar nossos próprios roteiros, que fazemos pátria. A pátria língua, a pátria estado ou a pátria corpo.
Kalaf, com seu recente livro Minha pátria é a língua pretuguesa nos provoca, por meio de crônicas a algo já sabido, mas que também “nos foge” ou precisa ser repetido: a língua portuguesa e a lusofonia são afro-europeias e não euro-africanas. O “pretuguês”, neologismo de Lélia Gonzalez, está encarnado. “É uma questão de números também”, diz o poeta e escritor angolano João Mello: “Se fizermos as contas os afro-brasileiros são 56% da população brasileira e, deles, 80% têm ancestrais angolanos; junte-se a isso os 30 e poucos milhões de angolanos cuja primeira língua é o português. Isso sem falar que as mudanças na variante brasileira do português são maioritariamente influenciadas pelas línguas angolanas bantu…”.
Ter uma história é ter uma identidade. Há quem viva como apátrida em si próprio, tendo o passado como uma terra estranha de caminhos desconhecidos que assombram. Nossos corpos também são pátria, canta Dino d’Santiago e faz uma prece antes de começar o show. Uma cena que não deveria passar despercebida. Nossos corpos também são pátria quando carregam sentidos, quando trazem uma historia única. O reconhecimento de algo sagrado está no gesto que cuida desses corpos cheios de gentes, memórias e desejos.
O caminho que entendi proposto pelo Kizomba Design Museum faz eco às provocações da 35ª Bienal de Arte Contemporânea, com suas “Coreografias do impossível” principalmente quando fala das urgências e convida a ampliar nossas percepções desafiando as rigidezas, algumas de estimação. Sem a dúvida, corremos o risco de recolonizar ou deixar ocupar, por desatenção, lugares férteis criadores de novos caminhos. Aqui talvez resida o maior desafio dessa dança.
Várias obras na Bienal me afetaram, tanto quanto vários ritmos e gostos no Kizomba. Um destaque para o suco de múcua no farto matabicho servido na Livraria Megafauna, e o balanço provocativo de João Reis, Passapusso e Branko na Casa de Francisca. Nos pavilhões da Bienal, Judith Scott me emocionou com seus casulos. A menina surda com síndrome de Down nos grita. E Ayrson Heráclito e Tiganá Santana nos convidam a silenciar diante de tudo que deixamos de tocar e saber porque nos foi tirado ou porque achamos saber tudo. A obra de Ayrson e Tiagná faz um tributo à floresta, uma oferenda às forças da natureza. Quase uma prece. Para entrar em alguns lugares, na floresta ou no palco, pedimos licença e uma bênção, Oxossi, Oya, o Cristo, a Virgem e tantos já nos ensinaram sobre isso. Voltemos ao Kizomba, não apenas pelos passos firmes no chão a que a dança nos convida, mas porque ela ultrapassou os seus próprios limites quando tornou-se salvaguarda de afetos, de memórias e de uma cultura. Somente através de um olhar alerta, o mesmo da floresta de Ayrson e Tigana, que os impossíveis conseguem acontecer.
Um tempo sem memória é um tempo oco, tal qual uma comida que degustamos e, quando nos perguntam “Que sabor tem?”, a resposta é “Sabor algum”. Às vezes, o passado é assim, sem gosto, às vezes é doloroso ou triste e às vezes é visto como o perigoso sitio das únicas alegrias genuínas e insubstituíveis.
Para construirmos um lugar, um sentido para habitarmos nele, precisamos da arte. A memória que recobre os lastros de nossa história não lembrada é feita de fantasia tecida pela palavra, pelos sons, que produzem uma verdade sobre nós (capaz de ser reinventada).
A memória, como disse o poeta Hesíodo, é “tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será”. Nesta memória que é um sendo cabe o alerta de Kalaf: “os sonhos são sempre inquietantes, sobretudo os sonhos políticos, perigosíssimos, principalmente quando nos esquecemos deles à medida que os revolucionários do antigamente se tornam burgueses da atualidade”. O sonhos e as danças, caro Kalaf. Os sonhos e os corpos são perigosíssimos!
A Kizomba pode ser um dos lugares possíveis a mostrar que os impossíveis são apenas uma estória a ser recontada.