Crédito foto: Axy Demba
“A democracia podia ser outra em África, de acordo com aquelas realidades e se tivessem surgidos debates internos, mesmo que em diálogo com agentes externos”, Sumaila Jaló
O Portal Vozes entrevistou Sumaila Jaló, investigador e ativista guineense. Com formação em Estudos de Língua Portuguesa e hoje em um doutorado em Discursos: Cultura, História e Sociedade na Universidade de Coimbra, Jaló nos conta sua história na Guiné-Bissau e em Portugal, discute a política atual do seu país de origem e questões como educação, língua portuguesa, Amílcar Cabral nos dias de hoje e democracia.
Sumaila defende que o Crioulou da Guiné-Bissau é a língua guineense, pois “é falada por mais de 90% da população, isto baseado nos dados do censo populacional realizado em 2009, o último censo realizado no país. Hoje as projeções apontam para mais de 97%, quase a totalidade da população, que usa a língua guineense como a língua veicular, como a língua de contato entre toda a população do país. De acordo com esse censo, apenas 27% da população usa o português, e não de forma corrente.”
Ao falar das línguas, Jaló conta que tem três línguas maternas, a língua guineense, mandinga e fula, que foi ter contato com o português fora de casa e aí destaca o poder da língua portuguesa como forma de dominação e poder: “a língua portuguesa sempre foi um elemento central para a mediação desta relação entre Portugal e as suas ex-colónias. E depois das independências, anos mais tarde, fundou-se uma organização chamada de CPLP, em 1996. Esta organização também é regida, sobretudo, pelo uso da língua portuguesa, como elo para a ligação entre os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Na própria denominação, temos um problema. A Guiné-Bissau tem mais de duas dezenas de línguas, mas essas línguas não são consideradas no espaço da CPLP. A língua portuguesa é a única língua usada é admitida nesse espaço”.
Perguntamos sobre o imaginário colonial que ainda tem em Portugal e Jaló comenta sobre as estruturas que continuam, como por exemplo: “a União Europeia detém a licença para a pesca nos mares da Guiné-Bissau e outras licenças noutros países para exploração de outros recursos, essas licenças são concedidas a partir da relação de Portugal com esses países”. E reforça que a responsabilidade de descolonizar é do Estado Português: “Portugal é que fez a colonização. Os portugueses é que devem descolonizar o imaginário português que ainda convive pacificamente com todos estes entendimentos estreitamente ligados com o processo colonial e de subjugação dos nossos povos”.
Para contextualizar a situação política na Guiné-Bissau, Sumaila diz: “quando eu falo e faço uma reflexão nesse sentido, é num esforço de mostrar que a democracia podia ser outra em África, de acordo com aquelas realidades e se tivessem surgidos debates internos, mesmo que em diálogo com agentes externos, mas não por imposição desses agentes”. E complementa: “eu acredito que nunca tivemos democracia na Guiné-Bissau. Está em processo uma tentativa de construção da democracia no nosso país, mas nunca houve. Só que hoje há uma situação pior”.
Confira a entrevista completa a seguir:
Sumaila, para começarmos, eu quero pedir para você se apresentar.
Eu sou Sumaila Jaló, eu nasci na Guiné-Bissau, numa vila chamada de Farim, no norte do país, há 33 anos, a 29 de maio de 1991, e foi onde fiz os meus estudos primários, até o primeiro ciclo do liceu e depois do nono ano mudei-me para Bissau, que é a capital da Guiné-Bissau, para frequentar o último ciclo do secundário, mas também aproveitar as possibilidades que existem lá e que não existiam em Farim, para aprender a falar inglês. E depois fiz uma formação em Bacharel em estudos de língua portuguesa. Um estudo que dá acesso à profissão de professor no meu país. Esses estudos de língua portuguesa compreendem as literaturas em língua portuguesa, não só africanas, mas todas elas, e estudos linguísticos também em português e da língua guineense, embora neste caso seja só uma iniciação nos estudos da língua guineense. Isto aconteceu na Escola Normal Superior Tchico Té, onde depois faria uma licenciatura na mesma área.
Um ano depois da minha licenciatura, em 2018, eu vim para Portugal. Primeiro, ingressei no curso de mestrado em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Eu pesquisei sobre ideologias educativas na Guiné-Bissau, tentando compreender de forma comparativa as ideologias das escolas do PAIGC, Movimento para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Essas escolas fundadas em 1964, um ano depois do início da Luta Armada, que também tinha começado a libertar as primeiras zonas no interior da Guiné e à medida que iam avançando para a libertação do território, iam implantando sistemas de educação, de saúde, um sistema de economia e até de funcionamento do próprio Estado num nível micro, depois da independência que ia ser uma implantação do Estado em termos gerais no território. E comparar essa dinâmica educativa do PAIGC com a escola colonial, que funcionou durante toda a época da colonização no território da Guiné e noutros territórios africanos colonizados por Portugal. Isto com o recorte temporal que vai de 1954 até 1986.
Mas sim, este é o meu percurso académico. Hoje estou em Coimbra a iniciar um doutoramento em Discursos, é assim o nome do doutoramento, Discursos: Cultura, História e Sociedade, é interdisciplinar e o meu interesse pelo doutoramento é por aí também, porque me possibilita pesquisar sobre o ensino da literatura na Guiné-Bissau numa perspectiva interdisciplinar, congregando as áreas de estudos culturais e literários, estudos de história e de memória, porque a própria escrita literária guineense conduz para estas dimensões todas.
Mas antes de todo este percurso que é mais académico, eu fui professor durante 4, 5 anos no meu país, professor de secundário, eu lecionei língua portuguesa. Houve um ano em que lecionei ciências sociais, que no ensino básico é equivalente a história e a geografia no sistema curricular guineense. Mas também desde 2016 tenho-me identificado como ativista e me envolvido em vários movimentos sociais, desde a Guiné-Bissau até vivendo agora em Portugal.
Na Guiné-Bissau, fiz parte do Movimento dos Cidadãos Conscientes e Inconformados, que se revoltou perante o desrespeito à Constituição da República, por então Presidente da República, entre 2014 e 2019, no caso José Mário Vaz, e o atual Presidente da República tinha sido o seu primeiro-ministro entre 2017 e 2018.
Então, a história das reivindicações também contra o atual Presidente que está a instituir uma ditadura na Guiné-Bissau começou nessa época. E por isso, não posso neste momento voltar à Guiné-Bissau. A intenção era, depois do meu mestrado, voltar e continuar o meu trabalho enquanto professor e investigador no meu país.
Mas esse histórico com quem depois viria a ser presidente da República, quando ele era Primeiro-Ministro, impediu que eu voltasse, porque não havia condições de segurança. Muitos dos meus colegas foram perseguidos, raptados, alguns deles gravemente brutalizados, espancados e alguns dos quais em estado crítico de saúde. Portanto, não era prudente para mim voltar naquela altura. Eu costumo dizer que não quero ser mártir, eu quero viver para continuar a lutar. Portanto, é mais ou menos o que sou em termos de percurso.
Hoje estou a iniciar uma carreira de investigação também, que começou com o mestrado e que já tem algumas publicações. Eu acredito que a investigação seja uma parte muito importante para quem queira ser educador, numa perspectiva de educar para a transformação das realidades.
Qual foi a sua primeira língua, de onde você nasceu? Você já teve contato com português desde cedo, como é que foi esse contato?
O contato com o português surgiu quando eu me despertei para a vida. Durante toda a minha infância, eu não me lembro de português nem em casa, nem na minha comunidade. Quando a infância já me transportava para outros meios de socialização como a rádio, foi quando eu me contactei com o português, como a maior parte dos guineenses. Foi quando eu me contactei, dizia, com a língua portuguesa, porque a própria rádio na Guiné-Bissau, as próprias estações radiofônicas funcionam mais em língua guineense e também em outras línguas locais, em outras línguas nacionais, línguas das várias etnias que compõem o país.
A maior parte do povo não usa o português no seu dia a dia, a população, digo, e não o povo, não usa o português no seu dia a dia, só através dos órgãos de comunicação social e através da escola. E mesmo nesses órgãos, a língua dominante é o crioulo da Guiné-Bissau, que eu prefiro chamar de língua guineense, porque é falada por mais de 90% da população, isto baseado nos dados do censo populacional realizado em 2009, o último censo realizado no país. Hoje as projeções apontam para mais de 97%, quase a totalidade da população, que usa a língua guineense como a língua veicular, como a língua de contato entre toda a população do país. De acordo com esse censo, apenas 27% da população usa o português, e não de forma corrente. Se nós formos verificar esse 27%, vamos ver que não haverá muita gente a usar a língua portuguesa no seu dia a dia e no contato normal com outras pessoas.
No entanto, eu acho que as minhas, eu digo acho, porque é difícil acertar nisso, porque nós falamos várias línguas e nascemos em comunidades multilíngues, mas eu acho que três línguas são minhas línguas maternas. A língua guineense, o crioulo, porque na casa onde eu cresci, a casa da minha mãe, onde eu nasci, onde eu cresci, é a língua mais usada. Desde que me lembro de eu falar com a minha mãe, sempre foi na língua guineense. É curioso que com os outros meus irmãos, ela até fala a sua língua étnica, mandinga, que também falo, mas comigo sempre foi a língua guineense. Não sei dizer porquê, mas talvez porque o meu pai é de uma etnia diferente, é fula e também falo essa língua. Portanto, eu cresci no meio em que aprendi as três línguas ao mesmo tempo, a língua guineense, mandinga e fula.
Mas talvez seja a língua guineense, o crioulo da Guiné-Bissau, a minha língua materna, a primeira que aprendi e falei com fluência e depois talvez mandinga, e não fula, a língua que vem a seguir. Porque no meio familiar da minha mãe é a outra língua mais falada e também porque enquanto a minha mãe ia trabalhar como enfermeira no hospital da minha vila, eu convivia e ficava ao cuidado da minha avó, que não falava outra língua que não a mandinga. Ela deve ter os seus motivos, mas eu hoje acredito que tenha sido por resistência. Ela entendia tudo o que as pessoas diziam em crioulo e na língua fula, por exemplo, mas ela não respondia em nenhuma dessas línguas. Eu nunca a vi a responder em nenhuma dessas línguas. Ela respondia em uma língua que é a sua língua. Portanto, foi, depois da minha mãe, a pessoa com que tive mais contato. Até eu crescer e começar a adolescência, essas duas, três línguas foram as que fizeram a minha infância e ainda me acompanham no meu dia a dia. Seriam as minhas línguas maternas.
Como é para você ser guineense em Portugal?
Apesar de ser uma pessoa envolvida com movimentos sociais e com vários espaços de mobilização, para além desses espaços, sou uma pessoa muito “encantonada” no meu espaço. Eu me mobilizo, mas ao mesmo tempo, um pouco fechado a fazer outras coisas que também são importantes para o meu percurso. Eu costumo dizer que nãoo sei se tenho muito a dizer sobre a experiência pessoal, de dizer desse lado pessoal de viver em Portugal, na medida em que não frequento muito outros lugares de contato para além dos movimentos sociais, que me possibilitaram e me têm possibilitado conhecer a realidade de outra forma, porque as causas permitem a isso e as causas obrigam a informar-se para a própria mobilização. Mas em termos pessoais eu tenho uma experiência de que não me posso queixar.
Eu cheguei em 2018 e fui para o Porto. Eu acho que o povo do Porto é acolhedor. Eu acho que o povo do Porto é muito acolhedor. Eu sempre me senti muito bem acolhido no Porto.
Na faculdade eu tive sorte, vamos dizer isso, tive sorte de ter uma turma de pessoas com várias nacionalidades, mas sobretudo brasileiras. E eu fiquei com a impressão de os brasileiros serem muito próximos na forma de ser e no trato como os guineenses. São pessoas muito abertas e com um senso de interação muito espontâneo, que não se fecham muito. E isso ajudou a integração no Porto. Até porque eram pessoas que tinham estado antes de mim no Porto. Portanto, a hospitalidade dos portuenses e o encontrar pessoas do Brasil que têm outra forma de relacionamento social ajudou-me bastante.
Depois eu fiz o meu mestrado também num tempo em que, o meu segundo ano de mestrado, por exemplo, foi num tempo em que tudo estava fechado e havia poucas possibilidades de contato com a rua e com outras pessoas. Era início de Covid e em Portugal iniciou naquela zona. Foquei-me mais na minha pesquisa, que eu concluí como esperava, mas o entendimento com que fiquei, aliás, da cidade do Porto é este, é o acolhimento, é a hospitalidade da sua gente.
E em Coimbra eu já conhecia pessoas. Eu em 2017 contactei-me com várias pessoas em Coimbra, investigadores e investigadoras dos Centros de Estudos Sociais que tinham ido para lá trabalhar, em pesquisas, em encontros e em reuniões acadêmicas e científicas. Essas pessoas possibilitaram uma integração mais facilitada em Coimbra. Estavam ligadas ao CROME, que é um projeto que estudou as guerras coloniais (para os portugueses), mas as lutas de libertação para os africanos, não é? E esse contato facilitou a integração em Coimbra. Esses amigos me ajudaram bastante, mas também porque tinha em Coimbra o meu melhor amigo, o meu primeiro amigo de que me recordo já vivia em Coimbra. Nós nascemos juntos e crescemos juntos, desde a nossa vila até depois mudarmos para Bissau. Ele veio para Portugal um ano antes, então já conhecia mais ou menos a realidade melhor. E quando eu me mudei para Coimbra, ele já vivia cá mais tempo. Já tinha três anos de Coimbra, então isso facilitou o processo de integração.
Em termos sociais, eu não posso transportar esta experiência boa, que eu considero boa, para a realidade de outras pessoas. Eu contacto-me com imigrantes africanos em situações diferentes, eu contacto-me com pessoas negras, pessoas de outras identidades, com possibilidades diferentes da minha, desde a licenciatura, aliás, desde o mestrado até o doutoramento eu sempre tive o privilégio de ter bolsas de estudo, o que possibilitou focar-me nos meus estudos e na minha investigação sempre, tirando um espaço de um ano e seis meses em que eu tive de trabalhar, no intervalo entre o doutoramento, aliás, o intervalo entre o mestrado e o doutoramento, e essa experiência possibilitou-me compreender a exploração que existe na realidade laboral portuguesa também. Eu trabalhei na restauração e a experiência transmitiu-me um entendimento de um ambiente de muita exploração. Muitas vezes chegarmos à desumanização, não pensarmos no trabalhador como pessoa que tem a sua vida, a sua família para cuidar, o seu próprio estado psicológico para cuidar e encararmos essa pessoa como uma máquina de produzir e de juntar mais valia para a empresa.
Mas no meio destas experiências eu deparei-me com pessoas em situações muito difíceis. Eu vim de uma realidade em que, apesar de ser pintada de pobreza, de miséria e de penúria, nós não temos experiência com pessoas sem abrigo. Apesar de tudo que os países africanos são pintados, a forma de conviver socialmente impede que hajam pessoas na situação sem abrigo, a não ser que essas pessoas tenham transtornos mentais e que esses transtornos atingem status em que é perigoso viver com essas pessoas sob o mesmo teto, a não ser esses casos, Mas pessoas em estado normal de saúde mental e da própria saúde física, apenas por serem desempregadas ou por serem migrantes, nunca são deixadas na situação de sem-abrigo, particularmente no caso da Guiné-Bissau, em que eu nasci e cresci. Porque as sociedades são muito abertas, mesmo não conhecendo as pessoas, elas são acolhidas, são encaradas. Aliás, há uma filosofia de vida que ensina na Guiné-Bissau a tratar melhor do hóspede do que do próprio membro da família, porque esse hóspede está num lugar em que nós um dia vamos estar. Nós somos todos migrantes, somos todos hóspedes, de alguma forma. E essa filosofia impede que haja pessoas sem abrigo, mesmo que nas famílias a situação não seja muito boa em termos financeiros e em termos de arcar com todas as despesas que ter muitas pessoas numa casa envolve, mesmo assim nós nos apoiamos. Esse espírito solidário impede-nos de conhecer a realidade de pessoas sem abrigo. E em Portugal eu me deparei com isso. A imagem que nos é vendida deste lado do mundo é tudo na melhor, não é? Tudo muito bem feito e todas as pessoas a serem cuidadas como devem ser cuidadas.
Portanto, eu conheço essa realidade diferente, mas conheço também como os migrantes são tratados, diferente de como eles são encarados na Guiné-Bissau. É claro que há manifestações de xenofobia na Guiné-Bissau também, mas como existe em Portugal, não existe. É claro que há manifestações de algum tipo de aversão a pessoas de raça diferente, mas são situações localizadas e não são situações estruturais, não são experiências estruturais. O racismo, a xenofobia, todas essas questões em Portugal têm a ver com a própria construção do imaginário do Estado Português que tem muitas linhas de continuidade com o colonialismo e a apetência imperialista, apesar de ser Portugal e da sua dimensão geopolítica ser o que é, mas a apetência imperialista ainda existe neste Portugal e de tudo isto trazer a questão da xenofobia e do racismo e de outros problemas com as minorias sociais numa dimensão mais crítica. Eu tenho noção destas realidades também, apesar de a minha experiência pessoal ser outra e de não poder ser generalizada com experiências sociais que eu conheço.
A descolonização no imaginário dos portugueses já aconteceu?
Eu vou tentar ser mais breve na resposta a esta pergunta. Há um instrumento legal instituído desde 1926 nas colônias portuguesas em África, designado de Estatuto do Indigenato, que quer dizer uma lei que era aplicada nos territórios de Angola, da Guiné e de Moçambique, e que tinha critérios para os indígenas ascenderem ao Estatuto de Cidadania e de Civilizados, deixarem o estado de gentios, de pessoas não civilizadas, para a ascensão, aliás, ao estatuto de cidadania e de civilizado, ou assimilado, na linguagem colonial. Esta lei começou a ser aplicada apenas em 1954 na Colónia da Guiné. Antes era apenas em Moçambique e em Angola. Por isso é que o meu mestrado também começa a partir de 1954, porque a lei determina, entre outros critérios para ascensão à cidadania, dominar a língua portuguesa, ter uma instrução escolar básica e viver à portuguesa, tanto em termos familiares como em termos de apresentação social e até das condições econômicas. São estes os critérios mais salientes da lei do indigenato.
Embora seja, tenha sido uma contradição, porque a taxa do analfabetismo em Portugal na mesma época era elevadíssima. As condições econômicas da maior parte dos portugueses na altura não se comparavam com quem era colono nesses territórios. Havia todas estas contradições. Mas é importante começarmos por esta lei porque ela vai configurar, depois surge o ato colonial em 33, entre 30 e 33, também no início já do Estado Novo, a estabelecer, a fundamentar, a justificar a colonização. Estas duas leis iam configurar as relações durante muito tempo entre Portugal e as suas colónias. É essa relação fundada numa lógica paternalista e de subalternização (Portugal como o civilizador, o salvador, e as colónias e os seus povos como povos não civilizados, povos que devem ascender à civização), que Portugal deve ensinar a sua cultura para essas pessoas serem consideradas civilizadas.
E há um elemento muito importante a mediar essa relação desde sempre, a língua portuguesa. A língua portuguesa sempre foi um elemento central para a mediação desta relação entre Portugal e as suas ex-colónias. E depois das independências, anos mais tarde, fundou-se uma organização chamada de CPLP, em 1996. Esta organização também é regida, sobretudo, pelo uso da língua portuguesa, como elo para a ligação entre os países, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Na própria denominação, temos um problema. A Guiné-Bissau tem mais de duas dezenas de línguas, mas essas línguas não são consideradas no espaço da CPLP. A língua portuguesa é a única língua usada é admitida nesse espaço.
Um segundo problema é que, aliás, ligado a este problema, a Guiné-Bissau não é o único país nessa situação. Angola, Moçambique, São Tomé e Cabo Verde têm outras línguas. A própria história de colonização brasileira ensina-nos que várias línguas e várias identidades foram subjugadas para a elevação da identidade brasileira ancorada na língua portuguesa. Portanto, o instrumento língua foi também e continua a ser, um elemento de repressão, dominação e de construção de laços de subalternização.
Portanto, o espaço da lusofonia demonstra-nos essa lógica. E a lusofonia, apesar de se apresentar como um espaço cultural, ancorado na língua portuguesa, tem outros interesses subjacentes a esta questão. E são interesses que também se ligam à colonização e ao projeto imperialista na sua dimensão macro. Portugal, para a sua afirmação geopolítica, usa esse espaço. Basta vermos para os discursos dos responsáveis das instituições do Estado português ao nível do envolvimento geopolítico, para percebermos que instrumentalizam esse espaço para o seu capital geopolítico.
E depois nós temos questões econômicas ligadas a isto. A União Europeia detém, por exemplo, a licença para a pesca nos mares da Guiné-Bissau e outras licenças noutros países para exploração de outros recursos, essas licenças são concedidas a partir da relação de Portugal com esses países. E infelizmente as atuais elites políticas nos nossos países facilitam a consolidação dessa relação de subalternização entre os nossos países, entre os nossos Estados e o Estado português, na medida em que esses mesmos responsáveis dos nossos Estados africanos apresentam Portugal como o seu advogado no espaço político internacional, o que é muito perigoso, mas também decorre da falta de projetos políticos ousados e da construção da soberania total dos nossos Estados em relação aos ex-colonizadores. Isto falando tanto das ex-colônias portuguesas como das colônias de outras potências coloniais imperialistas que têm relações ainda hoje com África.
Portanto, há esta linha de continuidade e estas linhas de continuidade configuram as nossas vivências em Portugal. As vivências e experiências de pessoas de Brasil, de Angola, de Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe, de Moçambique de Cabo Verde, de Timor-Leste, de Macau, de todos aqueles territórios um dia dominados e colonizados por Portugal… nós somos vistos ainda hoje como pessoas que beneficiam da benevolência de Portugal, pessoas que por exemplo estudam em Portugal, na continuidade daquela lógica, ascenderem a uma civilização mais sofisticada e baseada no imaginário ocidentalocêntrica.
Enfim, e por isso a lógica é nós estarmos sempre agradecidos a Portugal. Estes discursos, estas narrativas, este imaginário de portugalidade, que é pai das ex-colônias, ainda está muito presente no senso português. E, para terminar, acho que é um desafio enorme para nós, mas, sobretudo, para aqueles e aquelas que em Portugal se posicionam ou se dizem posicionar no sentido contrário a esta lógica.
Eu aprendi com o Antônio Bispo, que é um grande pensador brasileiro. E (Amílcar) Cabral tinha esse entendimento da fraternidade. Eu descobri o mesmo entendimento no Cabral quando diz que a luta pela independência não era propriamente uma luta contra o fascismo em Portugal. Essa responsabilidade seria dos portugueses. Assim como a luta para as nossas independências não era responsabilidade dos portugueses. Era responsabilidade nossa. Assumindo estas responsabilidades, nós podemos construir alianças. E o que o Antônio Bispo diz é que nós não devemos cair no erro de pensar que nós é que temos de descolonizar Portugal. Portugal é que fez a colonização. Os portugueses é que devem descolonizar o imaginário português que ainda convive pacificamente com todos estes entendimentos estreitamente ligados com o processo colonial e de subjugação dos nossos povos.
Como você avalia a posição do Brasil com os PALOPs?
Eu acho que o Brasil não se interessa muito, enquanto Estado, da CPLP. Tem outros interesses. Em Mercosul, tem agora os BRICS e tem possibilidade, a partir destas organizações, de disputar a própria representação no Conselho de Segurança das Nações Unidas, que tem sido a sua agenda diplomática. Mas eu acho que o Brasil podia jogar um papel importante na CPLP, no sentido de remar para uma direção diferente. Só que, para isso, as próprias lideranças brasileiras têm o desafio de internamente ter outras políticas em relação às minorias, em relação às pessoas colocadas na margem. Porque não adiantará, no plano internacional, assumir uma postura ao lado das pessoas marginalizadas nesse plano e internamente termos agendas contraditórias no plano interno.
É o entendimento que eu tenho do posicionamento brasileiro. E também porque, pelo pouco que sei do Brasil, há uma situação muito complexa. Nós não devemos menosprezar que, nos últimos 4, 5 anos, o Brasil lidou com um regime que foi o que foi. E agora está a tentar recuperar-se. Isto tem o seu significado na configuração das relações dos Estados. Porque se internamente as políticas para a democracia, para a igualdade, para a justiça não se consolidarem, dificilmente terão eco no plano externo.
É o que eu vou pensando e também em função do que vou conversando com pessoas do Brasil que conheço.
Você já falou do Cabral aqui na entrevista e em 2024 comemoramos o centenário dele e sabemos que a Casa da Cultura da Guiné-Bissau fará uma programação especial até 2025, pergunto qual o legado do Cabral e porque temos que buscá-lo?
Nós falamos aqui de situações como as de racismo. Cabral tem várias intervenções públicas e da esfera privada com a própria família, algumas dessas correspondências hoje felizmente estão publicadas, em que se demonstrava atento ao racismo no Brasil, por exemplo, em que se demonstrava atento ao racismo nos Estados Unidos da América. Ele argumentava esse interesse pelo fato de que há uma história que nos liga com pessoas vítimas do racismo no Brasil e a mesma linha da história nos liga com pessoas vítimas do racismo nos Estados Unidos da América. É um entendimento pan-africanista, em última análise, embora ele tenha tido um entendimento de pan-africanismo muito diferente das correntes que parecem ser dominantes. Cabral tem essa particularidade de ousar pensar e de ousar dizer o que pensa.
Falamos de xenofobia. Cabral rompeu as barreiras em Portugal para cursar com distinção a agronomia, para estudar o solo alentejano e estabelecer caminhos para a melhoria da agricultura nessa região e na vida dessa população, para se afirmar entre os privilegiados, sem qualquer tipo de complexo. Cabral ensina-nos essa necessidade de construção de autoestima e de nos encararmos como sujeitos capazes de transformar as realidades em que nos mobilizamos, mesmo não sendo as nossas realidades de nascença. E isso faz dele também uma figura transnacional, que ultrapassa as fronteiras de Cabo Verde, da Guiné-Bissau e até de Portugal, ou de outras ex-colónias portuguesas em África. O que também nos faz pensar nas atuais possibilidades do internacionalismo e pensarmos em como enfrentar o imperialismo, como enfrentar o colonialismo no seu estado atual.
Podemos falar de neocolonialismo em relação aos estados já independentes, mas a colonização é uma questão presente, tanto no estado neo como no estado de colonização pura e dura. Palestina, Congo e outros territórios, outras realidades, não estão a enfrentar neocolonialismo, estão a enfrentar colonialismo puro e duro.
Cabral ensina-nos a lidar com tudo isto. Por que é que nós nos devemos preocupar com Palestina? Porque nós somos um povo que lutou para a sua independência. Para Cabral era parte de um povo que lutava pela sua independência e não podia ignorar que outros povos estavam na mesma situação. E as alianças entre o que Fanon chamaria de os condenados da terra, é uma aliança que nós temos todo o motivo para estabelecer, e não teríamos tempo para explorar todos esses motivos para a construção dessa aliança e construirmos as nossas soberanias, as nossas independências totais, em conjunto, contra as forças que nos dominam, contra as forças que nos querem manter sob o seu controle.
Por isso é que Cabral é muito atual, Cabral não é um pensador do passado, Cabral é um pensador da contemporaneidade. Muitas das pautas que fizeram o seu pensamento e a sua ação revolucionária foram e são pautas muito atuais e que fazem, configuram as nossas relações, as nossas relações presentes. Por isso, em Portugal, na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, no Brasil, em todos os nossos países, Cabral continua muito útil e nós só ganharíamos no diálogo com Cabral.
Eu acho que nem precisamos de dizer que não deve ser num sentido de sacralização do pensamento de Cabral, de divinização da sua figura, porque basta nós nos contactarmos com o seu pensamento para percebermos que não é um pensador que busca essa afirmação. O seu pensamento incita-nos a aprendermos com a própria realidade e a construirmos as nossas ações com base no entendimento da realidade. Aquilo que seria a dialética entre a teoria e a prática. Cabral oferece-nos essa possibilidade. O seu pensamento é dinâmico, não tem um pensamento acabado. Cabral olha para a realidade e diz porque é que a realidade deve ser transformada e como.
Há um pensador brasileiro muito dessa linha e que curiosamente me possibilitou conhecer Cabral. Nas escolas da Guiné-Bissau não se aprende sobre Cabral. Eu sou de uma geração em que a história do nosso país já não era ensinada na escola e continua a não ser ensinada. A história da luta de libertação, do pensamento de Cabral e da sua ação revolucionária, não são ensinadas. O Paulo Freire, que eu conheci na minha formação de professorado, reconectou-me com Amílcar Cabral. E também tem um pensamento dessa linha, um pensamento muito dinâmico. Por isso, quando alguém critica o Freire na minha presença, eu ouço com atenção e depois digo, mas onde é que tu viste isso? Se for num livro mais anterior, eu desafio a pessoa a ler os mais recentes do Freire. Porque o próprio Freire tem um pensamento que se contraria a si mesmo, mas de forma muito consciente. Coloca o pensamento na práxis e isso possibilita a melhor compreensão dos fenômenos à medida que vamos prestando atenção a esses fenômenos.
Cabral é dessa dimensão. Todos os pensadores que baseiam a sua reflexão e a sua atuação na dialética entre teoria e prática, prática e teoria, oferecem-nos essa possibilidade. E essa forma de pensar, essa forma de encarar a realidade, incita-nos a olhar para a realidade dentro do seu contexto. E a compreensão de todos os outros aspectos tornam a própria realidade mais complexa do que a partida a entendemos. Portanto, Cabral e pensadores dessa linha, como Fanon, como Freire, outros pensadores, estão muito presentes no sentido em que nos possibilitam humanizar os nossos próprios envolvimentos e pensarmos em outras sociedades que são possíveis.
Educação era um pilar muito importante para a luta pela independência da Guiné-Bissau, quero perguntar o que ficou na educação do projeto de independência?
Para Cabral, a educação deve ser política. Política no sentido de construir a consciência política que é necessária para a transformação das nossas realidades. Consciência política, que Cabral acreditava ser uma questão que interessa a toda a sociedade, e não apenas a uma elite dirigente, mas a toda a sociedade, o próprio povo, para poder compreender por que é que tem certas responsabilidades e por que deve assumi-las, na transformação da sua própria vida. Ele dizia que a pedagogia para as escolas que se estavam a construir do PAIGC no início da luta não era para aprender o Lobo e o Chibinho, o Beabá e outros chavões da escola colonial, que tinha interesse em manter a relação de subalternização com as ex-colónias. Mas seria uma pedagogia política, pedagogia que teria em conta o processo da própria luta pela independência, a história pré-colonial da Guiné e Cabo Verde e de toda a África, de modo a construir na altura um presente e um futuro que seria para eles hoje, não é? E com base no entendimento histórico do processo transformador dessas sociedades. A educação seria dessa dimensão.
Por isso é que quando Freire chegou à Guiné-Bissau em 1975, para se envolver com as instituições educativas nacionais para a edificação da vertente da educação de adultos no sistema educativo, também pela sua postura pedagógica e filosófica, deparou-se com o pensamento de Cabral. Ele relatou em Cartas para a Guiné-Bissau, que foi publicado em forma de livro, que reúne correspondências e relatórios do seu envolvimento entre 75 e 76, 77, com as autoridades guineenses. Ele chega e diz que não vai ensinar nada, que ele nunca vai ensinar nada. Porque havia escolas e havia uma dinâmica nessas escolas. Precisava de compreender essas dinâmicas e as bases para a construção dessas escolas e só a partir dali podia ligar a educação de adultos, a alfabetização de adultos com a dinâmica já existente das escolas construídas nas zonas libertadas. E nesse contato, deparou-se com o pensamento de Amílcar Cabral e descobriu que tem a mesma linha, essa linha de que estava aqui a falar, a mesma linha do entendimento do mundo, a mesma visão sobre o mundo.
Portanto, com base nisso é que se construiu o programa para a alfabetização de adultos. Nessa época, nos primeiros anos da independência, até 1980, a educação seguiu essa lógica, a educação para a libertação, a educação transformadora, digamos assim. A educação transformadora no sentido em que era pautada para o entendimento da realidade, toda a sua complexidade, com vista à sua transformação, à sua transformação no sentido do progresso, da construção de justiça social, da construção de igualdade e de possibilidades para todas as pessoas viverem na paz e com dignidade na sua terra.
Em 1980, deu-se o primeiro golpe militar na Guiné-Bissau, a 14 de novembro. Este golpe teve três principais consequências. O corte do PAIGC com a sua ideologia fundadora, que era panafricanista e socialista, embora no aspecto socialista e até no pan africanismo, Cabral não afirmava isso por palavras, mas a ação leva a esse entendimento. Era uma questão estratégica e também preferia que o povo compreendesse a ideologia à medida que avançava na construção da nova vida e não por chavões, não por imposição de discursos e narrativas, mas na compreensão prática do que essas ideologias significavam, tanto o pan-africanismo como o socialismo. Essa base ideológica foi abandonada. Primeira grande consequência. Esta grande consequência trouxe outras.
Começou-se o processo de abertura econômica, com a entrada no cenário do Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, com os programas de ajustamento estrutural que foram impostos a vários países naquela época, com a crise do bloco socialista e as tensões da Guerra Fria, que conduziram depois para a afirmação do capitalismo internacional e a retração do socialismo, e todas as possibilidades de construção de sociedades mais igualitárias e mais justas.
Essa abertura econômica teve como outra consequência a abertura política, a abertura política para o multipartidarismo. Quando eu digo isso, não estou a afirmar uma oposição nem à abertura econômica, nem à abertura política, mas não foram aberturas conduzidas pela consciência dos próprios dirigentes dos nossos Estados. Foram imposições externas, abertura econômica, imposição do Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial e, a partir dali, a imposição da abertura democrática para o multipartidarismo, sem que o debate tivesse surgido das entidades nacionais. Foram as institucionais externas que precipitaram o surgimento de manifestações nacionais para essas aberturas e por isso ainda hoje a democracia é uma questão por compreender na Guiné-Bissau e em toda África, porque se baseia numa lógica de entendimento entre o mundo ocidental e não propriamente das dinâmicas locais de mobilização.
Embora as nossas sociedades tenham tido nas suas raízes vários mecanismos de democraticidade, as assembleias populares existem antes da inclusão da democracia nessas sociedades.
É verdade que não podemos ter os poderes antes existentes nessas sociedades como totalmente democráticas e com uma forma diferente da democracia ocidental. Mas quando eu falo e faço uma reflexão nesse sentido é num esforço de mostrar que a democracia podia ser outra em África, de acordo com aquelas realidades, se tivesse surgido debates internos, mesmo que em diálogo com agentes externos, mas não por imposição desses agentes. Mas essa imposição tem uma agenda, é uma agenda da imposição do capitalismo, do imperialismo e de todas as forças conexas a estes interesses.
Portanto, tudo isto precipitou o abandono das linhas do sistema educativo que possibilitavam a imaginação de sociedades não capitalistas, não consumistas, sociedades mais igualitárias, mais justas e que pautem pela dignidade das pessoas que vivem nessas sociedades. Começou-se a não ensinar a história da Guiné-Bissau e nem a história da luta de libertação. Os currículos escolares foram uma assimilação, no caso da Guiné-Bissau, do currículo português. Os aspectos da cultura e da história desse currículo são todos voltados para Portugal. O ensino da literatura é através de autores portugueses, sobretudo, poucos ou nenhum autores guineenses ou africanos. A história é do ocidente, são das guerras mundiais, que nem são mundiais, mas na tentativa de dar a conhecer os grandes transformadores na lógica ocidental do mundo, a partir destas narrativas. É das revoluções industriais e não numa leitura da opressão que acompanhou essas revoluções, mesmo internamente nas realidades onde essas revoluções aconteceram, na opressão de vários milhares de trabalhadores que pagaram por essas revoluções na pele. Nem estou a falar de africanos, mas de trabalhadores nessas realidades. Portanto, este processo é ainda hoje vigente, não é? A lógica educativa cabralista, freiriana, que acompanhou os primeiros anos da independência, os primeiros sete anos da independência e que ainda foi até 83, numa dimensão muito incerta naquela altura, passou a não existir. Passou a não existir e hoje o desafio é a refundação do sistema educativo. Mas quando falo da refundação do sistema educativo, falo da refundação da própria administração do Estado. Porque é a cultura da administração do Estado por elites internas, com ligação com interesses externos de dominação imperialista, que impossibilita a construção de um sistema educativo que esteja virado para a transformação social que beneficia a justiça social e a construção da igualdade.
Por que insisto na construção da igualdade e da justiça social? O capitalismo baseia-se na falácia do mérito e na ascensão de um pequeno grupo de pessoas que se apresenta como bem-sucedido, como pessoas trabalhadoras, pessoas com mérito, digamos assim, quando se apaga tudo o que acontece na dinâmica social do dia a dia para a construção da riqueza concentrada nessas pessoas.
Para contrariar esta lógica, nós não podemos ignorar a força do capitalismo neste sentido e como o capitalismo está interessado, mesmo na sua dimensão africana, está interessado em não imaginarmos sociedades iguais. Porque para o capitalismo não há possibilidade de construção de sociedades iguais. Aliás, quando houver sociedades iguais, deixa de haver capitalismo, e deixa de haver o mérito, deixa de haver riqueza de todos, criado por todos, nas mãos de um grupinho de pessoas. Por isso é que é também uma questão de mobilização política. Ou seja, os nossos envolvimentos cívicos, os nossos envolvimentos nos movimentos sociais, se não conduzirem à criação de entidades políticas capazes de disputar com, e de forma muito aberta e assumida, disputar com as forças que remam pelo sentido contrário e que estão interessadas em produzir desigualdades e injustiças para a manutenção do status quo, nós não chegamos lá. Nós não podemos cair na ingenuidade de pensar que as mudanças vão acontecer de repente. Eu falo enquanto parte dessas mobilizações todas. É preciso começarmos a pensar no passo seguinte. O passo seguinte tem de ser a disputa do lugar do poder. Porque é o lugar onde se produzem estas desigualdades e estas injustiças. Estando sob controle das forças contrárias ao pensamento que nós imaginamos para o mundo, não chegamos lá.
A última pergunta que eu quero fazer é sobre a situação política da Guiné-Bissau hoje. Você no início já contou sobre a sua situação, mas como é que é essa democracia guineense hoje?
Desde 1991, com o início da abertura democrática, que a Guiné-Bissau está permanentemente em transição, em transição de regimes autoritários para a construção da democracia. Eu acredito que nunca tivemos democracia na Guiné-Bissau. Está em processo uma tentativa de construção da democracia no nosso país, mas nunca houve. Só que hoje há uma situação pior. Nós chegamos a um estado, que se começou a construir em fevereiro de 2020, a 27 de fevereiro, quando o atual presidente tomou posse unilateralmente, à força, ao mesmo tempo que decorria no Supremo Tribunal de Justiça um contencioso eleitoral por reclamação dos resultados por parte do seu concorrente. A sua entrada foi logo assim, com o apoio das Forças Armadas, cujas chefias estão sob o seu controle e têm uma cumplicidade que ainda temos de descobrir até onde vai, de onde inicia e até onde vai.
De lá para cá, nós vivemos um processo constante de destruição de todas as pequenas conquistas para a democratização. Nem são conquistas democráticas, mas conquistas para a democratização, nomeadamente, liberdade de manifestação. Hoje, ninguém ousa se manifestar na Guiné-Bissau. Várias tentativas acontecem e acabam em prisões arbitrárias e em raptos e espancamentos. Há movimentos de resistência e tem havido tentativas de manifestação, mas logo no início dessas tentativas as pessoas são brutalizadas e barbaramente agredidas.
Não há liberdade de imprensa, uma rádio privada que tem uma linha editorial de dar palavra ao povo, abrir as suas antenas para o povo se exprimir e discutir a sua vida, foi duas vezes destruída em dois anos com o atual regime. Várias emissões radiofônicas foram suspensas por despacho do próprio regime, que não esconde essa apetência pelo silenciamento de vozes contrárias. E esses órgãos de comunicação social nem estiveram envolvidos em qualquer conspiração contra o regime, mas a assumir a sua responsabilidade de informar a opinião pública, de desmentir quando aos seus microfones agentes da ditadura dizem inverdades, porque as inverdades não devem ser deixadas passar assim como se quer que elas passem.
Ameaças à liberdade de reunião, partidos políticos da oposição são impedidos de realizar os seus congressos nas suas sedes. Mas mais grave do que isso, temos órgãos do Estado da Guiné-Bissau capturados pelo regime. O Supremo Tribunal de Justiça, o próprio nome indica a sua importância, é o Supremo, é a última instância judicial do país, está capturado. O seu presidente, não estando alinhado com o regime, foi retirado das suas funções à força. Foi obrigado a sair das suas funções pelo regime. No seu lugar, colocou-se, contra todos os dispositivos legais, um dos seus vice-presidentes, conveniente à agenda do atual Presidente da República.
O governo não é da escolha, no quadro constitucional guineense, o governo não é da escolha do Presidente da República, mas o governo que temos hoje é da iniciativa do Presidente da República. O governo na Guiné-Bissau resulta da composição do Parlamento, mais ou menos como acontece em Portugal. E o que o presidente da República fez foi dissolver o Parlamento contra o que a Constituição manda. Nós tínhamos acabado de sair de umas eleições legislativas, e de acordo com a Constituição, 12 meses depois de umas legislativas, não se pode dissolver a Assembleia e nos últimos seis meses do mandato do presidente também não se pode fazer esse ato. Mas contra todas as probabilidades, o presidente arranjou formas de dissolver a Assembleia contra a Constituição da República e, mais do que essa dissolução, porque mesmo que a Assembleia seja dissolvida legalmente, até às próximas eleições legislativas, o presidente em exercício do Parlamento continua em funções. No entanto, como presidente atual do Parlamento é de um partido da oposição, ele foi também retirado à força das suas funções para, no seu lugar, colocar-se uma vice-presidente que é da conveniência política do presidente da República.
Mais grave, os partidos políticos da oposição vivem uma situação impensável para nós de há um tempo para cá. O presidente instituiu lideranças paralelas no interior desses partidos, impôs lideranças no interior de quatro dos principais partidos políticos na Guiné-Bissau. Se estivéssemos num quadro parlamentar que funcione, esses partidos juntos constituem cerca de 95 deputados dos 102 deputados do Parlamento guineense. Esses partidos estão a ser alvos de ataques todos os dias do Presidente da República ao ponto de impor lideranças paralelas e essas lideranças serem homologadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, capturado por ele. Está a criar um cenário em que a justiça decreta para legitimar órgãos, a própria justiça, numa situação de ilegalidade, decreta para a legitimação de órgãos golpistas. O que está acontecendo na Guiné-Bissau é mais do que surreal. É um quadro inimaginável, que nunca enfrentamos ao longo de toda a história do nosso país.
Portanto, é o que temos como regime e por que nós nos mobilizamos nas dimensões possíveis contra o próprio regime. Apesar de tudo, eu, sabendo que há organizações, movimentos, tanto políticos como cívicos que se mobilizam contra o regime na Guiné-Bissau, eu acredito que isto chegue ao fim, só que tem de ser com a luta, tem de continuar a ser com o uso de todos os mecanismos ao nosso alcance para contrariar a lógica, não só através de denúncias, mas também através de ações que desafiem o estado a que nós chegamos.
É esta a situação na Guiné-Bissau e que tem apoio, para terminar, do Estado português, através do seu Presidente da República e do seu governo, mas também de vários partidos representados no Parlamento, particularmente partidos que configuram o sistema português. Eu não tenho dificuldades em dizer PS, que recentemente no governo com António Costa teve fortes cumplicidades com o regime da Guiné-Bissau. O PSD hoje está a seguir o mesmo caminho. Marcelo Ribeiro de Sousa, que teve coragem, apesar de ser constitucionalista, de receber o presidente da República da Guiné-Bissau antes mesmo de este ter tomado posse e quando estava em curso um plano de golpe institucional que viria a consolidar-se a 27 de fevereiro de 2020. De lá para cá, fez várias visitas oficiais a Portugal. Tanto o presidente como o ex-primeiro-ministro português já viajaram para Guiné-Bissau, mesmo sabendo que há uma tremenda ditadura a ser combatida pelo povo guineense. E mais grave de tudo, convidar esse ditador para ser condecorado nas cerimónias celebrativas de 25 de abril, dos 50 anos de 25 de abril, de celebração do que se chama de democracia em Portugal. Bela democracia que está em Portugal!