Ellen Lima, do povo Wassu Cocal, tem fomentado debates sobre colonialismo e questões indígenas no país
Por Lina Moscoso, Lisboa.
Como a causa dos povos originários do Brasil é tratada em Portugal? A escritora e pensadora indígena Ellen Lima Wassu, do povo Wassu Cocal, Estado de Alagoas, Brasil, foi para Portugal em busca da resposta para essa pergunta. Ela foi fazer um doutorado em Estudos Pós-Coloniais em uma universidade portuguesa. “Eu já tinha feito mestrado no Brasil em Artes Visuais. Eu estava bastante animada pelo debate”, comenta.
No entanto, a resposta não foi animadora. “Quando cheguei à universidade, percebi que o entendimento a respeito de questões coloniais e povos indígenas do Brasil em Portugal é muito limitado, eu diria limitado para não dizer nulo. Percebi que essa lacuna é um projeto da narrativa portuguesa para manter seu argumento da colonização como um necessário projeto civilizatório. A academia, espaço estruturado em bases colonialistas, não demonstrava interesse pelo debate, pelo contrário, em todas as aulas que assisti não se tocava no assunto”, explica. Ellen acrescenta que o que se fala de estudos pós-coloniais em Portugal são estudos dentro de uma matriz anglo-europeia que vem do Cultural Studies. “É um olhar focado nos estudos pós-coloniais de África, então o que é produzido fora desse continente e contexto histórico, não tem nenhuma reverberação por aqui. E aí quando vai terminando semestre eu pergunto para um professor sobre o Brasil”. E o professor responde algo como: “o Brasil já foi há muito tempo. O Brasil é um problema vosso”.
A partir disso, Ellen, junto com sua amiga escritora, Manuella Bezerra de Melo, se mobilizou para fundar o GEB, grupo de estudos brasileiros na universidade.
“Mas a verdade é que percebi que não existia entendimento, ou pelo menos vontade de entender essas questões. E como eu sou uma mulher indígena, toda vez que eu colocava o meu lugar de fala, ou questionava as lacunas bibliográficas, tudo era tratado com alguma
Entrelaçamento de línguas
Portanto, a ideia do que são os povos indígenas na atualidade é praticamente nula em Portugal, como reafirma Ellen. A escritora publicou um livro de poesias intitulado “Ixé Ygará voltando para `y´kûá” (sou canoa voltando para enseada do rio), todo escrito num entrelaçamento do português com a sua língua ancestral, que é o Tupi. O livro trata de algumas das questões que enfrentou ao longo da vida, uma mulher indígena, atravessada pela ocidentalização que faz o caminho de volta para a sua ancestralidade.
Foi a partir da publicação do livro que as pessoas em Portugal começaram a se interessar pelo que Ellen Lima tinha para dizer. “Então aí eu começo a frequentar alguns espaços, fazer palestras, facilitações e workshops, explicando porque, de fato, é um tema que não se trata por aqui, por mais que a gente diga que as coisas melhoraram”, coloca.
Outro episódio que exemplifica a fala de Ellen Lima a respeito da falta de entendimento relativamente às questões indígenas foi a produção de um texto de um colunista publicado em jornal que dizia que foram os portugueses / europeus que ensinaram os indígenas a cuidar da floresta e não o contrário. “E aí ele faz uma matéria muito desonesta. Eu reagi, em um vídeo que viralizou nas redes, explicando por que aquilo era um grande absurdo”. Para ela, isso diz muito sobre porque no Brasil existe alguma discussão em torno de questões indígenas, mas em Portugal não. “Acho que não havia outros indígenas contestando isso de maneira pública por aqui, então podiam dizer o que quisessem.”, reflete.
A escritora sente que o trabalho dela em Portugal está no campo da contestação da herança e da memória colonial. “É o que me cabe fazer aqui. Afinal de contas, sou um corpo indígena em Portugal. E sobre nós, há ainda um oceano de silêncios. Não se fala de povos indígenas do Brasil”, reforça.
Produção de conteúdos
Ellen Lima produz conteúdos não apenas na academia portuguesa, mas também escreve para a mídia alternativa “Afrolis” e produz conteúdo para as redes sociais. No Brasil, ela já trabalhava como comunicadora das questões políticas, literatura e arte indígena e outros temas. Ela faz parte de movimentos sociais e gerencia perfis. “Eu costumo colocar os pensamentos, coisas que eu também faço na internet com uma linguagem um pouco mais reduzida, mas que, de alguma forma, dê conta de entender e de explicar algumas coisas que eu sinto e que algumas pessoas simplesmente não sabem”. A escritora acrescenta que essa falta de conhecimento faz parte do projeto político do país. O ensino é colonial, as discussões são coloniais, a produção científica ainda é boa parte colonial, tanto no Brasil como em Portugal. “A gente percebe que tem um projeto muito claro, né? Eu fui pegar os manuais didáticos aqui (em Portugal) e percebi que a gente é tratado ainda como se trata no passado”, esclarece.
As redes sociais de Ellen são abertas e disponibilizam informação e conteúdos vinculados aos trabalhos que ela realiza. A escritora também tem lido suas poesias nos saraus e feito debates nos museus portugueses, principalmente através de leituras e conversas.
Sobre a receptividade, Ellen sente que, de alguma forma, existe uma abertura. “Mas é claro que é uma coisa muito pequena. Sim, a gente ainda precisa de uma visibilidade muito maior”, diz. Mas o retorno tem chegado, tanto de pessoas brasileiras, quanto dos portugueses e africanos. Segundo ela, a comunicação ser feita através da poesia, que é sua linguagem, é uma forma que aproxima. “É sobre aprender e desaprender. Então eu tenho feito esse tipo de trabalho e acredito que esse tipo de comunicação ajuda. Acredito também que a crise que a gente está é o ponto principal desse recente interesse, inclusive o fato de eu ter alguma voz aqui em Portugal. Hoje a gente vive num mundo de crises: crise ecológica, econômica e de sentido. E no meio da crise alguém lembra: opa, pera aí, tem gente que sabe viver em harmonia com a terra. E aí agora há todo um olhar voltado para nós (indígenas). Eu acho muito bom e muito ruim porque visibilidade para garantir direitos essenciais é fundamental, mas a responsabilidade de resolver as crises do mundo não pode estar nas nossas costas, inclusive não fomos nós que as criamos”, argumenta. É preciso construir em coletivo para lidar com essa crise, segundo ela.
Lugar de vínculos
A escritora acrescenta que o fato de ser uma Wassu e também ser brasileira amplia ainda mais as questões a serem debatidas. “Começo falando a partir do meu corpo, da minha nação. Depois, pela travessia do Atlântico, sou uma imigrante. Todos os lugares que ocupo física e simbolicamente nesse país são muito delicados”.
Relativamente aos fatos que dizem respeito à causa indígena, a escritora e ativista revela que ainda é preciso explicar o óbvio. “Eu tô aqui a trabalho. Me sinto completamente a serviço dos nossos povos. As notícias que eu vou buscar são de lá. As epistemologias que estudo são as nossas. Eu estou vinculada a organizações políticas indígenas do Brasil, que me informam nossa situação e demandas práticas”. A organização à qual ela está ligada é a APOINME, organização regional que faz parte da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). “Eu estou organizada politicamente e estruturalmente primeiro lá, então eu acho que esse talvez seja um ponto que faz com que as pessoas se interessem pelo meu trabalho, porque eu não tô aqui divagando sobre uma coisa alheia a minha vida, é isso que eu sou. Eu também tô na imigração, claro, que é uma coisa importante de ser falada, mas eu tô aqui falando junto com 305 povos indígenas. Então é também nessas organizações que busco e organizo as informações que acho que são importantes de serem tratadas aqui”, afirma.
Causas indígenas
Sobre as causas indígenas no Brasil no atual Governo Lula, Ellen Lima Wassu destaca que a luta existe há 500 anos e continua. “A diferença é que em determinados momentos, o colonialismo vai criando subterfúgios e a gente vai precisando jogar com as forças que estão vigentes. No último governo, a gente estava lutando pela sobrevivência, lutando contra um projeto etnocida que deveria ter acabado após a promulgação da Constituição de 88”. Só a partir da Constituição de 1988, que é a constituição cidadã, os povos indígenas foram considerados sujeitos de suas próprias culturas, de suas espiritualidades, da sua língua. Antes disso, o projeto era de assimilação até que os povos indígenas se tornassem trabalhadores nacionais e fossem integrados à sociedade brasileira.
“A partir da constituição cidadã muita gente acreditou que os nossos direitos estavam garantidos. Muita gente acreditou que a democracia estava garantida”. No entanto, durante o governo passado, o de Jair Bolsonaro, os indígenas estavam lutando para sobreviver porque havia um projeto de extermínio, a exemplo da crise humanitária dos Ianomâmis. A luta permanece porque o atual governo “trabalha com a tal governabilidade” que precisa negociar com os interesses mais espúrios de forças políticas como a do agronegócio, por exemplo. Mas “ter uma ministra indígena é uma coisa reconfortante e ter uma bancada parlamentar indígena, mesmo que muito pequena, também”, comemora a escritora.
A pressão continua sendo feita. “Então nesse sentido a luta continua organizada independente do governo porque a nossa luta é pela terra e pela sobrevivência. Principalmente pela continuação dos nossos modos de vida”, finaliza.
Saiba mais
Wassu Cocal é um povo da Zona da Mata de Alagoas, Estado do Nordeste do Brasil. Trata-se de uma região de disputa de terras com grandes proprietários rurais e usineiros, local de grilagem – usurpação da terra pública, dando-lhe a aparência de particular.
O território é demarcado desde o final da década de 1980. Essa demarcação acontece após o assassinato de uma liderança indígena e desde então o território é demarcado. É um território ancestral, cujo processo de colonização foi muito violento.
As terras dos Wassu Cocal estão a aproximadamente 50 km da Serra da Barriga, que é onde fica o Quilombo dos Palmares, em Alagoas. Ellen se intitula “da diáspora”, ou seja, é da primeira geração da sua família que cresceu longe do território porque o pai dela mudou-se para o Rio de Janeiro. Lá conheceu a mãe de Ellen, que nasceu no Rio de Janeiro. O pai de Ellen e toda a família paterna sempre esteve politicamente envolvida com um território dos Wassu Cocal. A escritora conta que passou a vida inteira confusa sem saber qual era a sua identidade. “Eu diria que vivi num limbo porque você escuta a vida inteira que você é uma coisa, mas a sociedade diz que você é outra e como a gente está inserido no Estado brasileiro é ele que domina. Nas imagens, nos livros escolares, nas narrativas”. Ellen entende que voltou para retomar uma identidade tanto pessoal quanto política, e por ela, segue organizada nas lutas. Nos dois continentes.