Por Jamil Chade
Um dos casos judiciais de maior impacto em Angola sofre um forte abalo e coloca em xeque o próprio estado de direito no país africano. Nesta semana, o Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária da ONU, um órgão supervisionado pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, emitiu um parecer sobre as condições em que o empresário luso-angolano Carlos de São Vicente foi preso, detido e processado.
Para os especialistas da ONU, Angola deve libertar Carlos de São Vicente imediatamente e o indenizar. Além disso, a entidade pede que se conduza uma investigação imparcial sobre as condições em que o processo foi conduzido.
Em 16 páginas, o parecer aponta para as condições de uma detenção prolongada injustificada, a violação do direito a um tribunal independente e imparcial, a violação da presunção de inocência e a negação dos direitos de defesa.
O empresário foi um dos homens mais importantes da economia de Angola. Durante quase duas décadas, mantinha o monopólio dos seguros da petrolífera estatal angolana Sonangol, Ele é ainda marido de Irene Neto, filha do primeiro presidente de Angola.
Mas foi acusado de ter montado um esquema com empresas em Angola, Londres e Bermudas, em operações que supostamente geraram perdas bilionárias para o tesouro angolano. Ele ainda foi denunciado por crimes de peculato e lavagem de dinheiro.
O executivo havia sido condenado em Luanda a nove anos de prisão e ao pagamento de uma indenização de 500 milhões de dólares. Carlos de São Vicente estava preso preventivamente desde setembro de 2020, condição que era denunciada por sua defesa.
Um dos argumentos usados por seus advogados era de que havia um componente político na ofensiva judicial contra o empresário, o que foi sempre negado pelo estado angolano.
Esgotadas as instâncias domésticas em Angola, sua defesa optou por levar o caso às Nações Unidas em março de 2021. Três anos depois, o mecanismo internacional confirma as irregularidades no processo, num duro golpe contra os tribunais do país.
O relatório oficial da ONU descreve a detenção de São Vicente como “arbitrária” e pede às autoridades angolanas que o libertem imediatamente.
Para os advogados que conduziram o processo em Genebra, François Zimeray e Jessica Finelle, a decisão é um “ponto de inflexão decisivo”. Segundo eles, houve um reconhecimento de que houve uma negação à justiça imparcial. “As consequências deste parecer sobre os processos passados, encerrados e em andamento em Angola, bem como os processos iniciados em outros países a pedido das autoridades angolanas, serão consideráveis: eles são ilegais e passíveis de serem declarados nulos e sem efeito”, afirmam.
Entre as diversas conclusões do órgão da ONU, ficou estabelecido que “o direito do Sr. São Vicente de ser presumido inocente foi violado”
Num dos trechos, o órgão da ONU “solicita ao Governo de Angola que tome as medidas necessárias para remediar a situação do Sr. São Vicente sem demora e a coloque em conformidade com as normas internacionais relevantes, incluindo aquelas estabelecidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos”.
“O Grupo de Trabalho considera que, levando em conta todas as circunstâncias do caso, o remédio apropriado seria libertar o Sr. São Vicente imediatamente e conceder-lhe um direito executável a indenização e outras reparações, de acordo com o direito internacional”, conclui o órgão da ONU.
Segundo o parecer, cabe agora às autoridades de Angola realizar uma “investigação completa e independente das circunstâncias que envolveram a privação arbitrária de liberdade” do empresário. O grupo ainda pede que “medidas apropriadas” sejam tomadas contra os responsáveis pela violação.
Para a defesa do empresário acusado, a constatação da ONU pode ser usada para questionar todos os pedidos de cooperação judicial enviados por Angola a países estrangeiros.
Essa não é o primeiro golpe que o Judiciário angolano sofre. No ano passado, o Supremo Tribunal da Suíça questionou a imparcialidade e independência das autoridades de Luanda e rejeitou uma cooperação com o estado africano para a troca de informações sobre Carlos de São Vicente.
Tal atitude não tinha um efeito direto processo a situação do empresário detido. Mas impediu as autoridades angolanas de recuperar os ativos do suspeito que estavam bloqueados na Suíça, no valor de cerca de 900 milhões de dólares.
Numa outra decisão, os suíços ainda determinaram o “descongelamento” de cerca de 260 milhões de dólares das contas do empresário e sua autorização para que o angolano pudesse voltar a ter acesso a esses recursos.
Preso há mais de três anos, o empresário não terá sua liberdade garantida apenas por conta de um parecer da ONU. Mas para juristas, especialistas e diplomatas, o documento abala a luta contra a corrupção em Angola.