Por causa desta boca ou “ob id os”

Por Samantha Buglione.

Loja do Américo.

A boca causa e da causa. E o copo de ginja, o licor suave de uma fruta prima da cereja, não fica vazio. Você pode até tentar, mas será um empreendimento praticamente impossível.  Filipe, filho e herdeiro da Loja do Américo, rebatizada como “Sitio dos bons malandros” pelo escritor Mário Zambujal na primeira edição do Folio, não vai deixar. A loja não é uma loja, tampouco é um armazém ou um bar, mas também é tudo isso, se quiser.

“Malandros” se encontram. Foto: Celestino Bastos.

Um sitio de encontro, diria Zelia, a advogada e parceira de Filipe na vida. Se conheceram na faculdade e juntos integraram o “Ginja Balaia Choros Místicos”, um grupo musical de não músicos composto por mais de 50 pessoas, criado por Filipe numa brincadeira com sérias repercussões. Os não músicos eram colegas da mesma turma mista na faculdade de direito em Coimbra,  nos saudosos finais dos anos 80. Sim, 50 não músicos capazes de viajar a Europa a fazer shows, de música. Longa história, precisaria de um texto só para ela, mas a referência é pertinente para dar a dimensão exata do que temos diante dos olhos: a sorte do impossível. Um não lugar, um grupo de não músicos, um bar que não é bar.

“Nada tem que ser absoluto, senão é o pensamento único”, diz Filipe, enquanto me conta da vez que convenceu o pai a lhe autorizar a vender e entregar na vila de Óbidos os jornais dos cliente, no alto dos seus 12 anos, já no tempo pós Revolução dos Cravos.

Filipe vendia mais que jornais, ele vendia perguntas. Convencia os comunistas leitores do “Avante” a comprar o jornal conservador “O diabo” de Vera Lagoa e fazia os conservadores e viúvos das ideias de Salazar a ler o “Avante”. Como? Dizia ele que a noticia escrita pelo outro jornal trazia uma visão reveladora do fato. Não estava a mentir. Felipe vendia o valor da diferença. A importância de olhares distintos para compor uma cena. Afinal, toda a narrativa de uma história é em si uma estória, e vice e versa.

Filipe.

“A realidade tem vários prismas”, diz ele; “É o risco da história única” diria Maria José, da Revista Linguara, ao abrir uma das mesas sob sua curadoria na 8ª edição do Folio. “É a importância da diversidade” defendeu Gisele Correa curadora e gestora cultural do Flipoços e responsável por trazer o Hip Hop pela primeira vez num Folio com os poetas Vinicius Terra e Mazé e também Ney Matogrosso que no auge dos seus mais de 80 anos segue fazendo história com mais vitalidade que muitos jovens. “Estamos a falar de inclusão” enfatizaria Celia Sousa responsável por toda uma série de debates sobre diferenças e acessibilidade. Mas quais acessos precisamos e queremos promover? E para quem? Ouvindo Celia e seus convidados me dei conta que chamamos de deficiente apenas alguém com outras eficiências: de-eficiencias. E que talvez precisássemos perceber o outro como se fosse um território com língua própria, estrangeira portanto, ao qual devessemos ouvir com fascínio e atenção.  É a baia profunda cantada de tantas formas por Mateus Aleluia e capaz de acolher sem distinção. Ou os vários prismas  já citados por Filipe e voltamos a loja e a ginja.  Imagine os riscos e implicações de falarmos uma língua sem sotaques, acentos e incorporações do tempo e dos outros. Ou falarmos apenas uma, ou fazermos ciência apenas com uma, ou lermos poucos falantes de outros territórios. O resultado disso é um paladar restrito e limitado. Tantas navegações, história e guerras em buscas de especiarias e outros sabores, saberes e texturas e insistimos em suco de laranja no matabicho. 

A arte é um acontecimento. Encontros são acontecimentos capazes de mudar história, a das pessoas e, a partir delas, do mundo todo. Zé Pinho fez isso. Seu legado está gravado no nome desta 8ª edição do Folio: RISCO. O risco de pensarmos de uma única forma, de comermos sempre as mesmas coisas, de acreditarmos ser nosso prisma a totalidade; o risco de não tentarmos um pouco mais, o risco de não falarmos o que sentimos, o que vemos, o que cremos; o risco de economizar palavras de amor, o risco que desenha palavras e estórias. O risco da linha que divide e da linha que faz ponte, um mesmo risco, mas tantas possibilidades.

É através da boca que o mundo acontece, da palavra dita e cantada, o “ob id os”, que significa “por causa desta boca”, uma das origens possíveis do nome desta Vila com tantas identidades. Foi pela boca da lagoa que encontra o mar que os romanos invadiram o sitio até então dos Celtas desde 4a.C, e depois dos Mouros e de todas as gentes, muita gente. Segundo dados da organização do Folio esta edição teve cerca de 90 mil visitantes durante os 11 dias do festival, mais de 603 autores e criadores em cerca de 108 conversas, 40 apresentações e lançamentos de livros, 40 espetáculos e concertos, 21 exposições, 18 sessões de leitura e poesia, 14 mesas de autores. É sem dúvida um empenho hérculeo. Além do desafio de acontecer na orfandade do seu mentor e idealizador e principal bom malandro agitador. Acontecer este folio é em si uma homenagem e reverência ao Zé Pinho.

Não consegui ter acesso aos números de quantos escritores e artistas vieram de cada um dos lugares presentes, e foram tantos, Portugal, Brasil, Reino Unido, França, Itália, Espanha, Noruega, Argentina, Cuba, Colombia, Angola, China e Israel, Bélgica, Macedonia, Croácia. Mas algumas coisas me chamaram atenção. Talvez meu gosto pela teoria das cores de Goethe tenha me feito pegar vício pelos detalhes e ficar atenta a diversidade da paleta. E acabei por sentir este grupo de malandros a percorrer as ruelas da Vila murada um tanto homegeneo demais. Vi poucos jovens, poucos negros, poucos países lusófonos para além do Brasil e Portugal. A curadoria de um escritor angolano trouxe brasileiros, uma mesa com poetas moçambicanos foi online. Já faz tempo que estranho cruzar com as mesmas pessoas nos festivais, e os mesmos discursos, já sei quem estará presente só vendo os curadores. Como se estivéssemos acanhados em arriscar. E que a arte buscasse mais segurança que provocações. Me incomoda ver grandes nomes a não abrirem caminho para o novo, para os novos. E sim apenas para os seus. O mesmo fotografo nos textos do escritor, a divulgação do livro da própria editora.

Não questiono em nada a qualidade, nem as importâncias, não é este meu ponto. Minha provocação vai ao encontro do tema do Folio. Afinal o que é risco e quais precisamos urgentemente assumir? As vezes tenho a sensação que esses espaços fantásticos acolhem mais nossos pares e são uma expressão e extensão de nós mesmos. Como cadeiras marcadas a servir de moeda de troca para alguma outra coisa ou a criar ilhas de pertencimento com acesso restrito.

Posso estar sendo antipática, eu sei. Mas estou a compartilhar meu prisma, limitado portanto. Mas realmente creio que vale pensarmos sobre o sentido radical de uma curadoria. O que estamos a curar, afinal? Que mundo estamos a construir? O que e quem queremos promover? Se a literatura por si só é uma arte elitista, porque exige o domínio de signos e tempo, ao contrário da música que só pede um corpo que se autoriza a sentir, como promover acessibilidade  e diferença senão assumindo riscos?

Por isso ouso dizer que o primeiro Folio, não o de Shakespeare, mas o de Óbitos, aconteceu muito antes de 2015. E começou ali, no não lugar do Américo em alguma poltrona com o Professor Abilio a contar histórias para as crianças, entre elas, Filipe. Zé Pinho sabia disso. Sabia da longa estória de “João e o Gigante” que começava a ser contada no inicio do verão e atravessava o ano. Todos os dias Abilio e crianças pequenas se encontravam entre o piso, poltronas e um banquinho de madeira. O mesmo que Filipe usava para observar as pessoas. O banquinho ainda está lá. E o olhar atento do menino também. Lá nesse lugar que parece  arriscar-se a acolher os estranhos, os dissidentes, os diferentes os de.ficientes, algo acontece.

O banco das histórias do Professor Abílio.

Para Filipe foi Abilio quem o fez pegar gosto pelas esquinas. A versão do professor de “João e o Gigante” acabava numa encruzilhada. Uma escolha necessária deveria ser feita. Isso foi tão potente que o menino de cinco anos nunca esqueceu. Escolher é arriscar. Eleger um nome e não outro para compor uma mesa num Folio é construir uma narrativa capaz de promover um lugar de valor que vai gerar escuta. Não basta falarmos em lugares de fala, porque precisamos criar lugares de escuta. Folio, Flip, Flipoços, Fliparacatu, Flipeba, Flipelo, Araça, Flix, Lisboa 5L, Correntes d’Escrita, Hay Festival, Frankfurt Book Fair, Rota das letras, só para citar alguns, são lugares que criam escuta. Quem ocupar uma cadeira estará não só a falar, mas a construir uma narrativa das importâncias, estará influenciando a balança do mercado editorial ou a legitimando. E sim, isso é um risco. Toda escolha é um risco. Algo se ganha, algo se perde, muito se cria.

Por isso falo sem temor que o tema risco deste Folio nos convoca a ir além dos arranjos tradicionais, conhecidos e confortáveis. Isso talvez seja a melhor forma de honrar o legado de Zé Pinho, frequentador da loja do Américo e apreciador da ginja e das estórias do Professor Abilio.

A ginja. Foto: Celestino Bastos.