Em cartas sigilosas, ONU denuncia ofensiva do governo de Angola contra ativistas

Por Jamil Chade.

Ilustração: Zozi.

Relatores da ONU denunciam a ameaça que paira sobre a sociedade civil angolana e, em cartas ao presidente de Angola, João Lourenço, alertam que projetos e incidentes violam os compromissos internacionais de direitos humanos do país africano.

Numa carta enviada no dia 29 de agosto de 2023 e obtida com exclusividade pelo Portal Vozes, três relatores das Nações Unidas acusam o projeto de lei sobre o Estatuto de Organizações Não-Governamentais de ser uma ameaça aos ativistas de direitos humanos.

Clique aqui e leia a carta na íntegra (texto em inglês. Arquivo em PDF)

O documento, de 13 páginas, é assinado por Clement Nyaletsossi Voule, relator sobre os Direitos à Liberdade de Reunião Pacífica e de Associação, Mary Lawlor, relatora sobre a situação dos Defensores dos Direitos Humanos, e Fionnuala Ní Aoláin, relatora sobre a promoção e proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais no combate ao terrorismo.

“Observamos que muitas disposições da lei proposta seriam contrárias às obrigações internacionais de direitos humanos de Angola, inclusive o direito à liberdade de associação, o direito à liberdade de opinião e expressão e o direito à não discriminação”, afirmam.

No documento, os relatores apontam que, se o projeto de lei for aprovado em sua forma atual, “ele imporá regulamentações excessivamente rígidas e concederá controle governamental injustificado sobre as operações de organizações não governamentais (ONGs)”.

“Isso limitaria significativamente a independência e a autonomia das organizações da sociedade civil em Angola, contrariando o direito das associações de operar livremente e sem interferência indevida do governo”, alertam.

A Assembleia Nacional de Angola aprovou o Projeto de Lei em 25 de maio de 2023. Mas ele ainda precisa ser debatido no “Comitê Especializado”, após o qual voltará para aprovação final pela Assembleia Nacional, antes de ser encaminhado ao presidente de Angola para assinatura da lei.

Mas, na carta, os relatores fazem um apelo para que o presidente João Lourenço desista da lei. “Pedimos encarecidamente ao governo de Vossa Excelência que não aprove o projeto de lei em sua forma atual e solicitamos respeitosamente ao governo de Vossa Excelência que consulte amplamente todos os setores da sociedade civil para desenvolver uma nova lei abrangente sobre ONGs, que garanta um ambiente propício para a sociedade civil e que esteja em conformidade com as obrigações internacionais de direitos humanos e as melhores práticas de Angola”, pedem os relatores da ONU.

Segundo eles, o projeto de lei permitiria um amplo alcance do governo e controle sobre as atividades das ONGs.

De fato, a nova norma prevê que entidades da sociedade civil apenas poderão implementar programas em províncias ou regiões selecionadas pelo Órgão Supervisor, que é nomeado pelo Presidente de Angola. Também fica estabelecido que os projetos das ONGs devem ser complementares às ações do Executivo e que seus mandatos devem estar em conformidade com a política social e econômica definida pelo governo.

Sem explicar, a lei ainda alerta que multas e até suspensões podem ser estabelecidas se forem identificadas “ações subversivas” ou “ações que possam ser percebidas como tal” por parte das entidades.

“Essas disposições permitiriam que as autoridades controlassem as atividades das ONGs”, denunciam os relatores que, na carta, apontam ao governo que as organizações da sociedade civil “não devem se limitar a atividades que tenham sido definidas e aprovadas pelo governo”.

O temor dos peritos internacionais é de que, com a lei, o governo tenha instrumentos que poderão ser usados “de forma abusivo para atingir ONGs que criticam políticas governamentais ou que são vistas como dissidentes”.

“Lembramos respeitosamente ao governo de Vossa Excelência que a livre expressão de ideias e informações é fundamental para um espaço cívico vibrante e para a boa governança”, alertam os relatores ao presidente angolano.

Outro problema destacado na lei a exigência de que as ONGs se registrem junto ao governo e recebam autorização do Ministério da Justiça para realizar suas atividades.

“Observamos que o projeto de lei não prevê motivos pelos quais a autorização possa ser rejeitada, dando assim ao Ministério da Justiça amplo poder discricionário para interferir nas atividades das ONGs”, denunciam.

Para completar, os relatores alertam que o projeto de lei concede “poderes excessivos ao Órgão Administrativo Estadual de Monitoramento e Supervisão de ONGs, o que comprometeria a independência e os direitos das ONGs”.

Como o Órgão de Supervisão é nomeado pelo Presidente, ele não teria autonomia em relação ao Governo e atuaria como uma entidade executiva. Ou seja, o projeto de lei concede a João Lourenço na prática a ampla autoridade para monitorar, supervisionar e dissolver ONGs sem supervisão judicial.

Intimidação e violência

Um mês antes de fazer a denúncia, outra carta da ONU já havia alertado para a “intimidação e assédio contra o defensor dos direitos humanos e líder sindical, Eduardo Peres Alberto”.

O documento é assinado por Mary Lawlor, relatora sobre a situação dos Defensores dos Direitos Humanos.

Clique aqui e leia a carta da denúncia e a resposta do governo de Angola. (Texto em inglês e espanhol. Arquivo em PDF)

“Acredita-se que essas violações estejam relacionadas ao trabalho do Sr. Peres Alberto na defesa dos direitos humanos, em particular em sua capacidade como Secretário Geral do Sindicato dos Professores do Ensino Superior (SINPES)”, aponta a relatora, em 10 de julho de 2023.

Peres Alberto é um defensor dos direitos humanos, professor universitário e cientista político. Mas ele ganhou notoriedade por assumir uma posição de liderança na ação sindical dos últimos meses em Angola. “Sob sua supervisão, educadores de todo o país se reuniram para protestar contra as supostas más condições de trabalho enfrentadas pelos professores”, explica a relatora.

Mas, desde 28 de março de 2023, ele tem sido submetido a ameaças, recebidas de autores desconhecidos por meio de seu telefone celular. Uma das mensagens de texto supostamente dizia: “É melhor você parar a greve, senão o que vai acontecer com você, você vai ver”.

Mensagens de texto de natureza ameaçadora semelhante também foram enviadas para o telefone celular de sua filha mais velha, Maria de Lourdes. No dia 10 de abril de 2023, entre 10h e 11h, sua residência em Luanda foi vandalizada.

Uma semana depois, Eduardo Peres Alberto descobriu uma fotografia editada de sua filha, que havia sido depositada sob a porta de sua casa. A foto continha palavras como “voltaremos” e “da próxima vez voltaremos para matar”.

Em 25 de abril de 2023, a filha do líder sindical caminhava por uma via pública em Luanda quando foi abordada por dois homens em uma motocicleta que a agrediram, lançando gás lacrimogêneo em seu rosto à queima-roupa. Posteriormente, ela foi levada a um hospital particular em Luanda devido ao seu estado crítico, onde permaneceu sob supervisão por 17 dias.

“Queremos expressar nossa profunda preocupação com as graves ameaças e intimidações perpetradas contra o líder do Sindicato, Eduardo Peres Alberto”, denuncia a relatora.

A resposta do governo angolano viria no começo de setembro. Numa carta aos relatores da ONU, as autoridades apontam que “não se pode interpretar intenção do estado” nos ataques contra o sindicalista.

O documento ainda garante que as investigações estão ocorrendo e que não existem temores para o ativista e sua família. A carta também assegura que o estado angolano não pratica qualquer ação que restrinja a liberdade de expressão.