Dublagens são necessárias?

A língua portuguesa em Rabo de Peixe gera discussões sobre como os sotaques devem ser respeitados

Por Lina Moscoso, Lisboa.

“Rabo de Peixe”, série portuguesa da Netflix, tem causado polêmica por causa dos sotaques dos personagens. A série se passa na ilha dos Açores, em São Miguel, na vila com o mesmo nome do título, e os atores falam em português de Lisboa. Além disso, a produção, que está fazendo sucesso no Brasil, tem dublagem para o português na variedade brasileira. Ou seja, apesar de ser a mesma língua, a Netflix entendeu que comercialmente as dublagens seriam um bom negócio para que o público de todos os países de língua portuguesa pudessem ter a total compreensão dos diálogos.

A série está sendo criticada nas redes sociais por não ter no elenco atores locais, uma forma de garantir a representatividade de Rabo de Peixe, vila açoriana. Algumas pessoas dizem que para ter o sotaque açoriano era preciso haver legendas e dublagem porque a fonologia da ilha não é inteligível nem para os portugueses do continente, quanto mais para os brasileiros, já que a variante do Brasil utiliza muitos termos diferentes.

Foi pensando nisso que a Netflix criou a opção de dublagem para o português do Brasil, com o intuito de despertar o interesse do público brasileiro pela série.

Mas é mesmo necessário lançar mão de instrumentos como legendas e dublagens para que o conteúdo de uma produção possa ser compreendido pelos falantes de língua portuguesa?

Fernanda Pratas, investigadora do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, considera natural a utilização de legendas e dublagens. A investigadora, que é membro do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa daquela universidade, lembra que até para os falantes da mesma língua há certos sotaques que não se compreende tão bem e outros que se compreende melhor.

Fernanda faz a distinção entre a gramática de uma língua e a linguagem falada.  A primeira é a que define a identidade de um idioma. “Por outro lado, temos os sotaques, variação dialetal dentro do que se considera a mesma língua em que há dificuldades de entendimento mútuo. E é o que se passa com a variação do português de São Miguel”, comenta.

Os sotaques do português

As dificuldades de compreensão têm a ver com questões apenas dos domínios da língua que é o domínio fonológico (o sotaque), conforme explica Fernanda. “Quando falamos em sotaque no que diz respeito à série, tendo em conta que são pescadores num barco ou com amigos na praia, seria perfeitamente possível que se eles falassem o português local, mas nem nós aqui (em Lisboa) entenderíamos boa parte do que eles estão a dizer”, justifica a investigadora.

No caso de “Rabo de Peixe” existe essa particularidade. “Eles estão a falar o português de Lisboa, embora seja aquela linguagem oral que é suposto não ser muito cuidada porque eles são pescadores, portanto, os diálogos estão numa variedade de língua mais popular”, acrescenta.

Relativamente ao público brasileiro, existe mesmo uma dificuldade em entender a língua portuguesa falada em Portugal. “A Netflix quis resolver isso e colocou a tal dublagem. Se isto é bom ou não é bom já são outras questões. Agora, eu acredito que isso pode ser precisamente para chegar a faixas mais vastas dessa população. Porque é um fato conhecido que os brasileiros têm dificuldade de entender”. Fernanda explica que, por vezes, não há reciprocidade de compreensão dentro de uma mesma língua, que é o caso do português falado no Brasil e o de Portugal, no que diz respeito aos brasileiros entenderem os portugueses. “Pode acontecer e não há mal nenhum nisso. É uma coisa que se explica também com base na fonologia que os falantes de uma variedade entendam relativamente bem os falantes de outra variedade e o contrário não aconteça”, esclarece a investigadora.

A falta de entendimento tem normalmente a ver com distinções fonológicas em cada uma das variedades. “Os brasileiros dizem que os portugueses comem as vogais porque na verdade o português europeu tem determinadas características fonológicas que faz com que haja algumas vogais muito reduzidas. Como se diz: são tão reduzidas que quase não existem”, brinca.

O portugueses aprenderam com as novelas brasileiras

O português de variação brasileira tem algumas distinções óbvias em relação ao português europeu, mas são daquelas que não perturbam muito a compreensão. Porque não são características de todo português brasileiro. Tem a ver com as regiões. Além disso, os portugueses assistem às novelas brasileiras há muito tempo porque essas são compradas pela emissora de TV SIC, desde os anos 90 e antes disso pela RTP, nos anos 70. Isso facilitou o entendimento do português na variação Brasil pelos portugueses.

Em 1977, Gabriela foi a primeira novela brasileira exibida em Portugal. A novela modificou a rotina de um país onde a maioria das pessoas só conhecia uma maneira de falar português.

Sobre a parte gramatical, que é a norma culta de cada idioma e é o que dá estabilidade, a língua também sofre alterações. “A questão é que nós temos aqui fatores que aceleram a mudança e temos um fator que contraria a mudança, que é a imposição de uma norma padrão e o fato de haver uma língua oficial ensinada nas escolas”, argumenta Fernanda. Ela explica que essa norma é necessária para que possamos nos comunicar por escrito, bem como no que diz respeito à tradução para outras línguas. 

Na opinião da investigadora, respeitando a diversidade, o que se devia fazer era ensinar às crianças e aos jovens a norma padrão, mas que nem todo mundo utiliza essa norma para falar. “E nem toda a gente tem de falar assim. Uma coisa é nós termos esse exemplo para usarmos em certas circunstâncias mais formais. Mas outra coisa é nós podermos falar como nos apetece no dia a dia, com os amigos, com a família sem sermos censurados ou discriminados por causa disso”. 

Em relação à discriminação linguística, Fernanda comenta o fato de as crianças chegarem em casa falando termos que são usados apenas no Brasil porque aprenderam com os influencers brasileiros. “Houve uma polêmica por causa das crianças. Os pais estavam completamente histéricos. Isso acontece. E isso é estúpido ainda mais não só pela questão da diversidade, mas pelo fato de que se as crianças aprendessem a falar palavras em inglês provavelmente os pais ficavam todos vaidosos. Portanto tem mesmo a ver com questões políticas”, declara.

Sobre o futuro da língua portuguesa, a questão para a investigadora é se faz sentido falar em uma única língua portuguesa diante de tantas mudanças e da construção de tantas variantes. “É uma realidade pluricêntrica, ou seja, são variedades diferentes do português. A grande questão é saber se são a mesma língua ou já não são”, indaga.

De acordo com a linguista brasileira Mary Kato, provavelmente o português já não tem a mesma gramática. “O que acontece é que temos que assumir que há essas diferenças e que uma língua pode ter poder sobre as outras. No mundo ideal viveriam estas variedades do português muito harmoniosamente com a vida comum e com as vidas separadas também e há espaço para tudo. Enquanto as pessoas forem falando e se compreenderem, ou seja, enquanto o vocabulário for bastante semelhante, pode-se dizer que são falantes da mesma comunidade de língua portuguesa. Mas há muita política envolvida nisso”, finaliza Fernanda Pratas.

Sobre a série rabo de peixe

“Rabo de Peixe”, realizada por Augusto Fraga e Patrícia Sequeira, foi um dos 10 projetos vencedores do concurso promovido pela plataforma Netflix com o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), para argumentistas, lançado em 2020, que teve no seu propósito apoiar a produção audiovisual portuguesa no contexto da pandemia de covid-19.

Com produção da Ukbar Filmes, “Rabo de Peixe” é a segunda série portuguesa para a Netflix realizada integralmente em Portugal, depois de “Glória”, de Tiago Guedes, produzida pela SPi e estreada em novembro passado.

“Inspirada (muito livremente) num evento real, ‘Rabo de Peixe’ conta a história ficcional de quatro amigos que veem a sua vida mudar com a chegada de uma tonelada de cocaína à costa da pequena vila açoriana Rabo de Peixe. A série é um ‘thriller’ com toques de humor sarcástico e uma história baseada na esperança, nos sonhos, na amizade, no amor e no mar que promete conquistar e arrebatar o público português”, descreveu a Netflix, em comunicado.

O elenco é encabeçado por José Condessa, Helena Caldeira, Rodrigo Tomás, André Leitão e Kelly Bailey, contando ainda com a participação de Maria João Bastos, Pepê Rapazote, Albano Jerónimo e Afonso Pimentel.