Apelo feito em manifestações realizadas pelo movimento Vida Justa luta pelo direito à habitação previsto por lei
Por Lina Moscoso, Lisboa
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Portugal vive uma crise no setor da habitação criada, sobretudo, por causa da adoção de medidas com o objetivo de tirar o país da crise financeira e colocá-lo no mapa de investimentos globais.
Uma reunião de fatores causou e agravou a situação até que se chegasse em um ponto que beira o caos. As cenas diárias mostram barracas em vários locais da cidade de Lisboa, como por exemplo, na Avenida Almirante Reis; debaixo da ponte da Avenida Infante D. Henrique; perto da estação de trem Sete Rios; e fora de Lisboa, como em Carcavelos. Nesses e em outros pontos há famílias que estão vivendo nas ruas porque já não conseguem pagar o aluguel. Além disso, não é incomum ver pessoas, coletivos e associações culturais sendo despejados devido à especulação imobiliária.
As medidas para alavancar o turismo vem contribuindo para o agravamento da situação de desabrigo, como a abertura para a instalação de alojamentos locais em prédios residenciais, por exemplo. Além disso, os incentivos à procura estrangeira de habitação em Portugal, quer seja através dos “vistos gold”, quer de incentivos aos nômades digitais, dificultam ainda mais a vida dos residentes portugueses e imigrantes dos países do Sul Global em Lisboa e em outras cidades portuguesas. Outra medida prejudicial é a redução de impostos a residentes não habituais, ou seja, estrangeiros qualificados em atividades de elevado valor acrescentado, propriedade intelectual, propriedade industrial ou know-how e beneficiários de pensões obtidas no estrangeiro, ou cidadãos portugueses que tenham estado emigrados mais de 5 anos, sobre rendimentos provenientes de trabalho qualificado, passivos e pensões. Essa redução começará a ser extinta a partir de 2024 porque o Estado português deixará de aceitar novas inscrições no regime fiscal dos residentes não habituais.
Deste modo, o mercado de habitação em Portugal está voltado para o investimento estrangeiro. De acordo com uma pesquisa realizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, entre 2012 e 2021, o custo das casas aumentou 78% em Portugal, contra 35% na União Europeia. Os aluguéis aumentaram novamente no segundo trimestre de 2023, pulando para 11%, num país onde o salário mínimo mensal é de 760 euros e onde 50% das pessoas ganham menos de 1000 euros por mês.
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Lisboa foi a cidade europeia onde os aluguéis mais aumentaram, entre 2013 e 2018, e é a única cidade da UE onde os valores médios de renda duplicaram.
Histórico
A crise da habitação, que remonta à época da I República (1910), em virtude de disputas de territórios, veio se agravando há três décadas. Mas apenas atualmente tornou-se um tema central dos debates porque começou a afetar a classe média e a mídia passou, portanto, a dar atenção, segundo Flávio Almada, rapper, ativista e integrante do movimento que luta pelos direitos das pessoas periféricas, principalmente, chamado Vida Justa. “Se formos recuar no tempo, grande parte da população que hoje habita as periferias e que construíram Lisboa de norte a sul e de sul a norte, em alguns casos, viviam nos canteiros das obras. Essas pessoas viviam nos armazéns porque não havia habitação para eles e também muitos não conseguiam sequer arrendar casa porque era época da luta de libertação e o racismo ainda era mais virulento do que aquilo que sempre foi”, narra.
O 25 de Abril (Revolução dos Cravos) trouxe um conjunto de programas de habitação, mas, até 2005, as leis não garantiam direitos aos imigrantes no que toca, por exemplo, à habitação. Flávio lembra que quando se fala em imigrantes é preciso levar em consideração que representa um conjunto de filhos de pessoas que nasceram em Portugal e que foram viver nas ex-colônias durante a Ditadura, mas depois retornaram a Portugal. “Desde aquela época não tinham acesso diretamente à nacionalidade Portuguesa e isso afetou diretamente um conjunto setor da população”, lembra.
Além disso, um conjunto de bairros foi completamente demolido, como por exemplo Miraflores, em Algés, que é onde atualmente estão instaladas as empresas multinacionais; bem como Azinhaga dos Besouros, que estava localizado na Pontinha Velha; Venda Nova; 6 de Maio; Fontainhas e Santa Filomena. Portanto, a população foi expulsa desses territórios e também do centro da cidade, como algumas famílias cabo-verdianas que viviam na Rua de São Bento, na Avenida da Liberdade e em Campolide foram despejadas.
Em 2002, foi criado o regime fiscal especial dos fundos de investimento imobiliários beneficiando o setor com uma série de isenções fiscais. Tornou-se evidente o papel do Estado na criação de novos instrumentos de financeirização do mercado de habitação português. Assim, o processo de crise foi se intensificando com a expansão da especulação sobre a habitação e chegou em Portugal com mais intensidade, a partir de 2008, com a troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), em virtude da aplicação de políticas neoliberais. Momento em que o país abriu-se aos investimentos estrangeiros – e também o setor imobiliário – com incentivos à venda de casas ao capital francês, espanhol, chinês e sueco, entre outros.
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Os preços aumentaram, até mesmo nas periferias. Hoje não se consegue encontrar um apartamento de um quarto nos bairros periféricos por menos de 800 euros. E as periferias foram se estendendo em virtude da expulsão das pessoas. “O que era periferia até 2015, por exemplo, a Amadora, ou a partir do Benfica, já não é periferia porque há uma expansão do centro e basicamente as pessoas da classe trabalhadora mais pobre, imigrante e racializada tá a ser empurrada”, contesta Flávio.
As medidas do governo português priorizam sempre o interesse de grandes grupos econômicos, em vez das pessoas que trabalham, como observa o ativista. “E mesmo dentro dessas pessoas que trabalham não há nada dirigido às pessoas da periferia, em termos de criar estruturas, equipamentos sociais e mobilidade social”, destaca. Para ele, a tendência é piorar a crise.
Imaginário coletivo português
Flávio Almada frisa: “Portugal é um país que tem um déficit enorme de cultura democrática e é um país que nunca se ‘desfascistizou’ e nunca se descolonizou”. E continua dizendo que a estrutura mental de pensamento e a própria estrutura social de hierarquia é muito fascista e sobretudo para quem vem de uma experiência migratória. Ele lembra que ser imigrante e racializado em Portugal torna as garantias de direitos sociais mais difíceis porque dizem: “quem são vocês que nem sequer fazem parte do imaginário social como integrantes do país para estarem aqui a exigir então a lógica assim”. Segundo o ativista, o imigrante tem que ser uma ferramenta para produzir, como mão de obra barata, sem uso de direitos e sem contestar. “Essa que é lógica. Mesmo que não seja imigrante basta ser considerado não nacional (as pessoas que não têm origens portuguesas) já é um um obstáculo”, salienta.
O ativista explica que o imaginário coletivo é a noção de que o Estado português é branco. “O Estado torna-se um instrumento de condensação de um conjunto de interesses de uma determinada classe: a burguesia. Então as coisas são mais complicadas porque é um país semi-periférico com imaginário coletivo de colonizador e racista”, enfatiza.
No que diz respeito às lutas, Flávio lembra que há muito conformismo com as medidas governamentais impostas. Deste modo, há muito trabalho para fazer.
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Medidas governamentais
No que toca às ações do governo português para sair da crise da habitação, poucas medidas foram tomadas, como o lançamento de um pacote da habitação chamado “Mais Habitação”, que entrou em vigor no início de outubro deste ano. O pacote cria incentivos fiscais e reforça a segurança no arrendamento, abre “linhas de crédito de 400 milhões de euros para construção ou reabilitação de imóveis” e promove uma nova geração de apoio às cooperativas de habitação, bem como dá aos municípios novos instrumentos para promoverem a colocação de mais fogos – parte ou totalidade de um edifício dotada de acesso independente e constituída por um ou mais compartimentos destinados à habitação – no mercado de aluguel, segundo o texto da lei. O conjunto de medidas também prevê também que as mais valias de vendas de imóveis ao Estado passem a estar isentas de impostos, permitindo assim reforçar a oferta pública de habitação.
Na opinião de Flávio Almada, as medidas deveriam ser tomadas de baixo para cima, ou seja, o governo teria de ouvir as comunidades e a classe trabalhadora para saber o que é melhor para elas antes de propor leis. Para ele, o problema está à vista de todos e a cada dia cresce mais o número de pessoas despejadas ou deslocadas para lugares mais distantes e sem condições de pagar casa.
“A consciência moral, o governo não vai adquirir. Nós (os imigrantes periféricos e racializados) não temos tido no mercado nenhuma mudança em termos de decisões. O que nós notamos é que o governo criou algumas medidas direcionadas para seu eleitorado. Não alterou nada de substancial”, argumenta.
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Vida Justa
O movimento de Vida Justa, que existe há um ano, trabalha com vários eixos sociais – transporte, custo de vida, salário, etc. Um deles é a questão da habitação. A construção teve início no pós-pandemia por causa do aumento do custo de vida, da habitação e dos transportes e está “virado para um conjunto de territórios e de populações que normalmente são descartadas, esquecidas e que, portanto, não fazem parte do debate político”, revela Flávio Almada.
O movimento organizou duas manifestações: uma em fevereiro e outra em outubro de 2023. Depois, juntaram-se à manifestação Casa para Viver, realizada no dia 30 de setembro de 2023, bem como participaram do desfile do 25 de abril e de ações contra o racismo do dia 10 de junho – data nacionalista que representa o dia de Portugal. O movimento também lançou uma petição “Basta de Aumento dos Preços, Vida Justa” e tem realizado debates, assembleias e angariação de fundos para que o movimento continue.
De acordo com Flávio Almada, as adesões ao movimento têm aumentado porque as pessoas se identificam à medida que vão sendo afetadas diretamente pelos problemas.
“Só que o nosso grande desafio vai ser que o que nós queremos construir em termos de organização mais a longo prazo para continuar porque isso não vai passar agora. E mesmo que passe para um determinado setor para nós não vai passar”, afirma o ativista.
O Vida Justa congrega vários movimentos. Um deles é o movimento negro. “Com convergências e divergências, com debates e confrontos, o movimento tem tido uma vida interna muito intensa. E isso é importante”.
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Frentes de trabalho
O Vida Justa atua nos bairros com o trabalho de acolhimento e de debate. As frentes de trabalho estão nas periferias, que é onde estão as pessoas que mais necessitam, conforme Flávio Almada. “Nós dependemos que as pessoas ajudem cada vez mais para fazer isso. O nosso campo é mais virado para a periferia”, diz.
O movimento também vai atuando em outros debates, como a questão da Palestina. No dia 2 de novembro participará de uma roda de conversa promovida pela Frente Anti-Racista intitulada sobre clonialismo, racismo e o apartheid israelita.
“Estamos disponíveis para aquilo que nós acreditamos a partir da nossa capacidade de construir uma luta forte e organizada, no sentido de fazer pressão para a garantia dos nossos direitos. Sim, essa luta já existe”, finaliza.