Casa d’África quer resgatar a cultura e história africana em Portugal  

Por Larissa da Silva

Um espaço em Lisboa para representar os países do continente Africano, no centro de Lisboa. Helmer Araújo, guineense, concede uma entrevista ao Portal Vozes para apresentar o projeto que construiu com amigos e colegas guineenses para “descolonizar mentes”, lançado no dia 1º de agosto e com uma agenda completa de cultura. 

Araújo conta que a ideia de ter uma Casa d’África é um projeto antigo que já passou por várias gerações de africanos em Lisboa e que agora os idealizadores querem que a Casa “saia do quintal, que venha para a sala de visita da sociedade portuguesa, onde seja reconhecida como parceira em termo de instituição de utilidade pública”. 

Também sonham com o processo de reparação histórica, um sonho antigo e que seria muito “ambicioso, de resgatar alguns artefatos, algumas peças da nossa tradição e tê-las conosco. Se nós não podemos levar ou retornar ao nosso país, mas que fique aqui em uma casa nossa”.

Informações sobre a Cada d’África: 

Local: Casa de Pedra – Av. Dr. Arlindo Vicente, 1950-079 Lisboa

Confira a entrevista: 

Quem é o Helmer Araújo? 

Eu sou Helmer Araújo, guineense, nascido na Guiné, mas hoje com nacionalidade portuguesa. Considero-me um cidadão do mundo, porque a questão identitária para mim é humana. 

Estudei uma parte da minha vida na Guiné e uma parte aqui em Portugal. Acabei por vir à Portugal, tirei frequência no curso de Economia em uma das melhores escolas e depois fui para a Comunicação Social na Católica (Universidade). No último ano comecei a estagiar na rádio Renascença, que é a rádio católica portuguesa. Aliás, eu trabalhei na rádio como efetivo de 2001 a 2007, 6 anos efetivo. Depois em 2007 estive como correspondente na Guiné, pois estava lá num projeto e foi também a fundação de uma rádio cristã, ao estilo da Renascença é a Rádio Sol Mansi, da qual de 2003 a 2006 eu fui diretor. Depois vim para Lisboa, trabalhei da Fundação Pro Dignitate, com a matriarca da democracia portuguesa, estou a falar da Maria Barroso Soares, foi esposa do Mário Soares e ela acompanhou o marido em todo o processo da luta contra a ditadura, o processo da democratização da sociedade portuguesa. E tinha uma fundação, a Pro Dignitate, infelizmente com ela já perdendo a vida e falecendo, os filhos não continuaram. Mas trabalhei lá durante 4 anos, era uma Fundação que contribuiu bastante para a paz em Moçambique, através de Santo Egídio de Roma, criou-se a primeira ponte de diálogo entre o FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e a RENAM (Resistência Nacional Moçambicana) e foram essas instituições que fizeram o diálogo e contribuíram de forma bastante mesmo, muito discreta, mas foram fundamentais para a paz em Moçambique. 

A Pro Dignitate teve também atenta a questão da Guiné, pois nós tivemos a guerra de 1998 e contribuiu bastante, aliás, a mídia da paz, que contribuiu com cursos de formação para jornalistas e todos esses cursos nós chamávamos de “jornalismo para a paz”, “jornalista para prevenção dos conflitos”. 

A partir de 2011, 2012, eu vou pro Brasil e fico na Embaixada da Guiné-Bissau no Brasil, como Assessor de Comunicação e imprensa e tive lá 7 anos. Trabalhei no Brasil, trabalhei diretamente como consultor da Fundação Palmares, ainda deu para fazer algumas atividades. Estive muito ligado ao Núcleo, que criamos com o professor Ivair. Começou como Núcleo dos Estudantes Africanos na UNB, que depois passou para o laboratório, chamou-se Laboratório de Estudos e Pesquisa Amílcar Cabral, LEPAC. 

Se fosse falar da Guiné-Bissau, o que compartilharia?

Eu nasci em Bissau, bairro Chão de Papel, vivi até aos 7 anos em Bissau e depois vim para cá (Portugal). A maior riqueza da Guiné é o guineense. Lá no Brasil eu costumava dizer que o Zumbi era geneticamente guineense. O Guineense é geneticamente autêntico, é acolhedor, as pessoas quando chegam para nós é uma festa. O hóspede para nós é valioso. Para algumas etnias da Guiné, quando o hóspede chega a pessoa dá o quarto, o quarto principal. Ele vai tratar bem, porque depois tem a dádiva, o retorno, o povo guineense é um povo acolhedor de forma natural.

Embora a nossa multi-etnicidade seja grande, temos mais de 20 etnias, mas a nossa união é muito forte. Tivemos guerra civil, não foi igual as outras, matando por questões étnicas. Nossa guerra foi militar, bélica e depois econômica, nada racial, nada étnico, até agora. 

De 2018 pra cá, a Guiné está a se transformar e a caminhar para um precipício. O guineense como tem essas características, também consegue ir buscar o extremo, quando vai buscar a violência. Isso me preocupa. 

Parece que não, mas os portugueses, das colónias todas que tiveram, a colônia que mais deu problema, foi a Guiné. 

Agora quero perguntar sobre o Projeto Casa d’África, como será? 

Nós estamos descobrindo muitas coisas, queremos uma sede social, e tivemos uma informação muito preciosa, de que esta ideia da Casa d’África já vem lá dos anos 1940, mas em cada fase há um grupo de impulsionadores, mas vão até o caminho e depois para. 

Um dos últimos grupos que se manifestou, nos anos 1980, tinha um guineense chamado Fernando Ka, deputado suplente do Partido Socialista e ele avança num espaço para uma associação. Nós já temos algumas informações preciosas, como um despacho do presidente da Câmara para um espaço, mas independente disso, nós estamos a trabalhar no alicerce. 

Nós vamos seguir com a constituição, na base da constituição, nós vamos começar a montar a casa. Nós não queremos uma Casa d’África que vai focar na diversão, com festas, não, a cultura é fundamental, a nossa revolução mesmo na Guiné foi cultural, mas nós vamos querer uma Casa d’África que, como eu disse, que saia do quintal, que venha para a sala de visita da sociedade portuguesa, onde seja reconhecida como parceira em termo de instituição de utilidade pública, seja reconhecida como parceira para criação de políticas públicas, relacionadas com os africanos e onde fundamentalmente seja reconhecida como entidade pública para ter o que é de África. 

Quando falo isso é um sonho muito antigo também, muito ambicioso que seria resgatar alguns artefatos, algumas peças da nossa tradição e tê-las  conosco. Se nós não podemos levar ou retornar ao nosso país, mas que fique aqui em uma casa nossa.

Mas a curto trecho, este e a nossa ambição, criar um espaco de excelência para debates e discussões que envolvam os africanos daqui e também em África. Temáticas como por exemplo, industrialização da África, vamos ter conferências, oportunidades de negócios. Aliás, nós temos já como exemplo a Casa d’África da Espanha que já reuniu todas as empresas espanholas que estão a investir em África de uma ponta a outra. Eles criaram uma plataforma disso, em que essas empresas hoje trocam experiências, fundamentais, isso foi graças a Casa. 

A Casa d’África para o turismo tem muitas questões, uma relação com as Embaixadas, com os países africanos que tem a chancelarias aqui em Lisboa, não só para procurar diretamente, mas para em conjunto com essas embaixadas tragam essa visão da África positiva, uma Áfrca que está a crescer, tem países que crescem mesmo, tem países que crescem a 4%, 5%, temos uma África a pulsar e essa África precisa ser mostrada. Há espaço para isso. 

Como será a integração dos países do continente para a Casa d’África?

O espírito nosso é o de unir, não é só dizer da boca pra fora “união faz a força”, mas eu acho que nós todos temos a consciência muito clara que se unirmos teremos mais força. O segundo aspecto, descolonizar as mentes para um projeto comum, o que eu quero dizer com isso: parecendo que não, existem essas ilhas, parecendo que não isso é um sinal evidente que estamos desunidos, agora existe entre nós uma instituição que está a fazer pra isso. Enquanto não existir, não vamos nos unir. 

Agora partindo da premissa que qualquer instituição de origem africana, chegado o nosso convite e mostrada a estratégia comum de nós todos, há uma necessidade de uma plataforma que una nós todos. E podemos buscar a associação mais antiga que possa presedir, ser rotativa, a Casa d’África quer ser a impulsionada para que haja essa união entre todas as associações de cariz africana, ou que tenham a África no coração. 

Na inauguração da casa, o senhor comentou sobre a origem da Casa d’África ter sido uma ideia entre os estudantes da Casa dos Estudantes do Império. Queria que você nos contasse sobre isso. 

Portugal foi tendo a presença africana de várias formas, aliás desde que eles tiveram contato conosco, a partir do século XV e XVI já tem uma presença africana aqui e nos anos 1940, com os ventos, sobretudo em 1945  com  fim da II Guerra Mundial e com os ventos da redemocratização, das organizações e vendo mesmo países como a Inglaterra, que já estava até com um movimento africano, por exemplo Gana é o primeiro a ser independente, os países francófonos também já davam alguma coisa, então naquela altura já há um grupo de africanos e estudar aqui, sobretudo com pais abastados, que vieram estudar pra Coimbra, Lisboa, era a elite.

Pensaram numa Casa da África, uma coisa de união, mas quando pensaram nisso rapidamente os portugueses avançaram e pensaram na  Casa dos Estudantes do Império. Mas lá era mais uma residência, não era assim uma coisa organizada, mas lá tá, o feitiço saiu contra o feiticeiro. Foi só juntar no mesmo lugar para começar a rebeldia e quem começou foi um guineense, Amílcar Cabral, começou logo com as independências, isso pra dizer o que, tudo o que foi criado desde os anos 1940, houve depois nos anos 1980, 1990, algumas pessoas que diziam que, dar o nome de uma Cada d’África era colonial e íamos retornar a questão colonial, mas só chamar de África e ser colonial, é colonial, por isso nós temos que descolonizar as mentes, não ter medo de chamar de Casa d’África e lutar pra que seja digna e respeitada. 

A última pergunta que eu queria fazer era sobre reparação histórica, vocês estão a criar um espaço para reforçar a cultura, política e trajetórias africanas em solo europeu. Gostaria que comentassem o que seria uma reparação histórica para vocês.

Eu acho que o que o Marcelo Rebelo de Souza fez foi tentar gozar com um processo histórico que foi violento, começou com a escravatura, depois veio a colonização, depois veio a neocolonização, que eu acho que existe mais neocolonização do que descolonização completa. Digo isso porque se repararmos hoje ainda não somos completamente independentes, podemos ter ganho a independência política, mas a independência económica, não ganhamos. 

É mesmo essa palavra, reparação. Se ele sabe, se existe uma necessidade de reparar, é porque alguma coisa ficou estragada. Você não repara uma coisa que ficou boa, só essa palavra já diz tudo. Agora da forma leviana que vai trazer, é que está a ser mal, está a ser antipedagógico, aproveita já os partidos da direita para falar. Eu acho que a questão política aqui tem que incluir, porque nós estamos a partir do princípio de que não há a nossa presença no espaço político. 

Já em Durban (África do Sul) em 2002, teve um historiador que falou da dívida do mundo ocidental, sobretudo dos países colonizadores com os países que foram colonizados. Tentou-se em Durban criar uma dívida, até porque eles criaram um sistema de dívida para os nossos países, ajudas de desenvolvimento, mas não tem sido benéficas, estão a afundar cada vez mais os nossos países e o mais engraçado, nós não temos um sistema de pobreza, repara que a África não é pobre, ela é empobrecida, o africano é feito e fezem-no acreditar que é pobre, quando não é. 

Nós somos aquele menino sentado a pedir esmola, isso é África, cada vez mais empobrecida, não é pobre, nós somos o continente mais jovem, vamos ter a mior força de produção nos próximos anos e vivemos na probreza. Não, nós fomos empobrecidos. E esse sistema que diz que tem uma dívida conosco, continua usando o empobrecimento. 

Então se o Marcelo quisesse mesmo ele criava uma comissão, fazia uma coisa séria, não se começa a construir uma casa pelo telhado.