A Suíça e o tráfico de escravizados

A história de como a Suíça lucrou – e quase quebrou – com o tráfico negreiro entre África e Brasil

Por Jamil Chade

Ilustração: Zozi.

A Suíça não tem mar e nunca teve colônias. Mas documentos oficiais revelam, agora, que o governo em Berna não apenas sabia da existência de suíços donos de escravos no Brasil, como argumentou ao Parlamento na época que seria uma violência punir os empresários europeus pelas práticas.

A informação sobre os novos documentos descobertos nos arquivos do estado foi divulgada numa reportagem da RTS, a TV pública do país. Os informes detalhavam a presença de suíços, donos de escravos no Sul da Bahia no século 19, principalmente na região de Ilhéus. Com 2 mil homens escravizados, fazendas e locais como a cidade de Helvecia (BA) produziam cacau e açúcar para a exportação. Uma delas era a Fazenda Vitória, explorada pelos suíços Gabriel Mai e Ferdinand von Steiger a partir de 1852. 

As autoridades suíças sempre negaram terem participado do sistema escravagista, indicando a existência apenas de casos isolados de fazendeiros suíços. Mas o que os arquivos federais revelam agora, segundo o historiador Hans Faessler, é que o governo suíço não apenas não agiu contra a escravidão, como defendeu os suíços que possuíam pessoas escravizadas. 

Em 2 de dezembro de 1864, o governo suíço rebatia a proposta feita por deputados para que os suíços fossem punidos por ter pessoas escravizadas. Segundo o documento, as autoridades estimavam que seria impossível priva-los de sua propriedade, adquirida de forma legal.

Para o governo, os escravos eram “necessários para sua exploração, dado que a maior parte das terras no Brasil é cultivada por escravos”. “O principal valor de uma propriedade brasileira não consiste, como na Europa, na terra (que tem pouco valor dada a imensa extensão do Império), mas sim no número de escravos usados para exploração”, explica. 

Banqueiros, ações e quase uma falência

Mas a realidade é que, para muito além do documento, o envolvimento suíço com o comércio de pessoas era pleno. 

No dia 14 de abril de 1719, a República de Berna, por exemplo, comprou 150 mil libras em ações na uma das maiores empresas do mundo no tráfico de escravos, a South Sea Company, de Londres. A iniciativa transformou Berna no maior acionista da companhia e o estado gastou quase 10% de suas reservas nesse investimento. 

No caso de Berma, porém, a aposta de investir em pessoas escravizadas quase levou o cantão à falência.

Um estudo da London School of Economics (LSE) revelou que a estratégia de Berna chegou a chamar a atenção da monarquia britânica e, na época, foi considerada como uma das maiores iniciativas financeiras por parte de um estado. Berna, ao contrário de dezenas de governos pela Europa, vinha de dois séculos sem guerras, o que permitiu acumular um importante superávit. Mas precisava encontrar aplicações para o dinheiro que acumulava.

A empresa South Sea havia sido criada em 1711 e tinha como objetivo ajudar o governo de Londres a reduzir suas dívidas graças ao comércio. Mas a realidade é que o fluxo de bens com a América do Sul, seu principal objetivo, era praticamente inexistente. O continente sul-americano era dominado por espanhóis e portugueses, o que impedia concretizar o plano britânico.

Mesmo assim, as ações da empresa ganharam uma dimensão inusitada, alimentadas por pura especulação. O único comércio que de fato ocorria nas mãos da South Sea Company era o de escravos que, a partir de 1715, dominou as atividades da empresa. Mas que não justificava o salto no valor das ações.

A companhia iria deportar da África para as Américas cerca de 34 mil escravos, em 96 expedições. Centros de comercialização foram montados pela South Sea Company no México, Panamá, Colômbia, Cuba, Jamaica e Havana.

Em 1720, porém, a bolha iria estourar, gerando profundos impactos para a economia britânica. Uma CPI chegou a ser montada pelo Parlamento Britânico, que confiscou os ativos de empresários do setor e ainda puniu políticos que teriam se beneficiado de forma ilegal.

As contas de Berna sairiam ilesas em um primeiro momento. Em junho de 1720, um dos bancos alertaria para os riscos do rápido incremento nos valores das ações, num sinal claro de que o aumento não era baseado em um maior lucro da empresa, mas sim por conta de especulação. Conservadores, os representantes de Berna decidiram no dia 22 de junho de 1720 vender todas suas ações na South Sea Company, obtendo um lucro de 660% em comparação ao que haviam aplicado um ano antes.

Nos dois meses seguintes, as ações desabariam, causando o primeiro estouro da bolha no sistema capitalista.

Mas o impacto para Berna não havia terminado. O crash da bolsa de Londres levou à falência dos dois principais bancos de Berna, o Malacrida & Cie e o Samuel Muller & Cie. O caos financeiro gerou uma crise política e obrigou a República de Berna a redesenhar sua constituição.

Os lucros que Berna havia obtido ao vender suas ações antes do crash, segundo o estudo da LSE, foram suprimidos diante das perdas com seus agentes financeiros e, por 30 anos, nenhum novo banco foi aberto na cidade suíça.

Se Berna quase quebrou, outros fizeram verdadeiras forutnas. Longe dos portos de Lisboa, Luanda ou Salvador, eram banqueiros e empresários suíços que, de uma forma expressiva, financiavam o tráfico, expedições para buscar africanos para as Américas e se enriqueciam com ele. 

Hoje, parte dos prédios imponentes e palácios de cidades na Suíça foi erguido justamente com os lucros dessa atividade, na época legal.

Bancos e famílias como Burckhardt, Weiss, Favre ou Rivier, financiaram dezenas de expedições, numa atividade bastante arriscada. As ameaças eram de revoltas nos navios, de tempestades que poderiam gerar a “perda total” da embarcação e mesmo surtos de doenças durante a travessia, matando metade dos escravos. Os bancos suíços, portanto, atuavam para “assegurar a mercadoria”. 

Entre 1783 e 1790, por exemplo, os irmãos Weiss financiaram dez expedições em barcos que receberam nomes como “La Ville de Bâle (A cidade da Basiléia)”. As estimativas apontam que, entre 1773 e 1830, mais de cem expedições foram financiadas pelos suíços, o que significou o transporte de milhares de africanos. Alguns historiadores, como Thomas David, Bouda Etemad e Janick Marina Schaufelbuehl, estimam que os suíços financiaram o tráfico de 175 mil escravos.

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