A cidade mais quilombola do Brasil, Alcântara, ainda luta pela titulação de sua terra

Portal Vozes entrevista Danilo Serejo, quilombola, para analisar a situação dos povos que vivem na região, da decisão recente da OIT e da base espacial de Alcântara.

Por Larissa da Silva

No início de julho de 2024, uma decisão histórica da Organização Internacional do Trabalho (OIT) provocou o Estado brasileiro. Titular o território das comunidades quilombolas de Alcântara, respeitar o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada, foram alguns dos pontos que a OIT provocou ao Brasil, que mesmo depois de 36 anos da Constituição Brasileira de 1988, quando a região foi avaliada como Quilombo, não o fez. 

O Portal Vozes convidou Danilo Serejo, quilombola da Comunidade de Canelatiua, em Alcântara, no Maranhão, formado em Direito, para nos contar a representação dessa decisão da OIT, contar a história dos Quilombos de Alcântara, região “que concentra proporcionalmente a maior população quilombola do país, 85% das pessoas, segundo o IBGE, se autodeclara quilombola, o que torna a Alcântara o município com mais quilombolas do país”, diz Serejo. 

Também falamos sobre o termo “aquilombar” que hoje em dia é utilizado nos movimentos negros, onde Danilo lembra que “é preciso ter muita cautela, porque o Quilombo mexeu com a economia colonial. Quando ele saiu e se formou lá longe do centro da fazenda, ele paralisa a economia colonial, isso é aquilombar, isso é o contrário do que estamos vendo”. 

Serejo também discute a política brasileira para tecnologia aeroespacial, onde reforça que “a parceria comercial deve ser uma das frentes do setor, mas o Brasil precisa chamar para o centro o investimento no seu próprio projeto aeroespacial”. 

Confira a entrevista completa: 

Quem é o Danilo? 

Eu me chamo Danilo Serejo, sou quilombola da comunidade de Canelatiua. Em Alcântara, sou formado em Direito e por conta disso, até recentemente eu estive formalmente na coordenação do grupo de assessoria jurídica das comunidades de Alcântara. É um grupo composto por várias pessoas e organizações. Também tenho mestrado em Ciência Política e sou um dos coautores desta reclamação na OIT (Organização Internacional do Trabalho) e também fui co-peticionário do caso na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que está em fase de sentença, provavelmente deve sair uma sentença ainda este ano.

Danilo Serejo

Onde é a Alcântara? 

Alcântara é um município brasileiro que está geograficamente localizado na região nordeste do país, mas é um município que está também na região amazônica. É um município da Amazônia brasileira, embora esteja oficialmente localizado no nordeste, mas por ser o Maranhão um estado que está na transição entre nordeste e Amazônia, Alcântara, já está na Amazônia brasileira. 

Alcântara concentra proporcionalmente a maior população quilombola do país, 85% das pessoas, segundo o IBGE, se autodeclara quilombola, o que torna a Alcântara o município com mais quilombolas do país. É um município composto por cerca de 220 comunidades, todas essas certificadas pela Fundação Palmares e em processo de titulação. 

Então esse território que hoje é conhecido como território quilombola, passa a ser constituído a partir do final do século XVIII, com o abandono das terras pelos antigos proprietários, que eram os antigos escravocratas, em função de crises econômicas internacionais. Esses proprietários saem de Alcântara, vão para São Luís, mas a grande maioria vai para a então capital do Brasil, o Rio (de Janeiro), e as terras ficam lá abandonadas. 

Com a Lei de Terras de 1850, que é a Lei que institui a propriedade privada e que diz que os proprietários têm que dar um destino para suas terras, alguns desses proprietários voltam e doam ou deixam prepostos essas terras para os seus escravos. Então, quando chegou a Lei Áurea de 1888, na prática não existia força de trabalho escrava em Alcântara, as pessoas escravizadas já estavam, na prática, livres, porque não tinha mais prática escravagista. E aí é nesse processo que começa a se consolidar o que hoje nós chamamos desse grande território quilombola em Alcântara e que passa a ter direito à terra com na Constituição Federal Brasileira de 1988. 

Só para a gente entender, não sei como é o termo em Portugal, o que são comunidades Quilombolas, são comunidades que começaram a ser constituídas no período da escravidão, no Brasil e que surgem como resistência, como oposição ao sistema colonial. Difere do que algumas pessoas entendem ou chamam, quilombo não descende da escravidão, é o contrário. O Quilombo no Brasil nasce como oposição a escravidão, é a recusa de tornar-se escravo.  

Identificada em vermelho, a cidade de Alcântara, localizada da região metropolitana de São Luís

Qual a sua opinião sobre o conceito e o uso de “Quilombo” nos dias de hoje para tratar de outros contextos sociais? 

Aqui no Brasil já existe o que nós chamamos de “Quilombos urbanos”, que são áreas periféricas que surgem dado um contexto histórico, social e mesmo econômico. 

Eu acho que é importante a gente entender que o Quilombo está sempre referido a um processo de presunção histórica e ancestral e de resistência, eu acho que não há um conceito ou uma forma para você sair aplicando para cada realidade, porque cada grupo social tem o seu processo singular de formação, de constituição. A Constituição de 1988 é o que vai ressignificar o conceito histórico de Quilombo, se antes de 1988 o Quilombo estava referido a fuga, que fugiram da casa grande e que construíram povoados bem distantes, a partir de 1988 não, aí o critério antropológico e sociológico passa a definir essa ideia do que é um Quilombo atualmente, que é a presunção de resistência, de presunção ancestral. O principal critério que vai ser utilizado para isso é o critério da autoatribuição, que é quando a pessoa ou grupo toma consciência da trajetória da sua comunidade e a partir disso passa a se reconhecer como tal. O critério da “fuga”, ele é abandonado na década de 1980. 

Agora o movimento negro tem feito uma apropriação importante dessa ideia do Quilombo ou da ideia do aquilombar, porque se criou no imaginário social e político, o que é na minha avaliação um romantismo desnecessário, de que Quilombo é sinônimo de paz, amor, união, é isso também, resulta de uma construção coletiva entorno da recusa de tornar-se escravo, mas Quilombo também é conflito, Quilombo também é luta, quilombolas também brigam, mas aí se apropria isso ao movimento negro, que eu acho importantíssimo, mas precisa ter cuidado. 

Pode tudo virar “vamos aquilombar a política”, isso se não tiver cuidado, ela banaliza a trajetória, o conceito ancestral do que é ser um Quilombo, porque Quilombo é por excelência a briga por liberdade, por isso que é um conceito ancestral. 

E aí tem duas coisas importantes: o movimento negro brasileiro tem extrema dificuldade de lidar com a questão quilombola, porque o movimento negro também entende que raça também é um critério definidor de Quilombo e não é só. O que é um critério ou um conceito central para se entender um Quilombo hoje no Brasil é a questão étnica, não é a questão racial. A questão racial perpassa, mas não é a questão principal de discussão e o movimento negro tem extrema dificuldade de lidar com isso, porque ele se coloca sempre, se pensarmos em termos hierárquico, o movimento negro se coloca sempre em nível superior, porque acha que tem o domínio total do controle dessa agenda e a gente precisa entender que do ponto de vista sociológico, econômico, se pensarmos na economia colonial, quem vai dar origem ao movimento negro, são dois povos, são os povos de terreiros e são os povos quilombolas e não é o contrário, como alguns, as vezes, do movimento negro pensam, e é preciso que isso seja colocado. 

Mesmo no Quilombo colonial, o Quilombo não era só formado por pessoas negras, Quilombo era o que reunia tudo o quanto era pobre e marginalizado, seja ele de qualquer cor, do centro da colônia. Por isso que eu acho que quando a gente usa aquilombar tudo, “vamos aquilombar a política brasileira”, vamos, até que ponto? Porque aí você não muda o sistema enfeitando a banda do sistema. Você só vai aquilombar se você adentrar o sistema e mexer na engrenagem do sistema internamente e até agora, têm os esforços que os governos de esquerda tem feito, até agora isso não foi possível. 

Então você tem tudo, mas se você quiser fazer alguma justiça ao aquilombamento é preciso ter muita cautela, porque você está fazendo tudo, menos aquilombar, porque Quilombo mexeu com a economia colonial. Quando ele saiu e se formou lá longe do centro da fazenda, ele paralisa a economia colonial, isso é aquilombar, isso é o contrário do que estamos vendo. Então virou um modismo, vou aquilombar, aldear a política, igual o conceito de lugar de fala, né? Tudo virou agora o lugar de fala. 

O que da cultura de quilombo ainda permanece em Alcântara? 

Tem uma coisa que é muito forte, a relação dessas comunidades com a terra e com os recursos naturais, né? Isso é uma coisa muito forte, porque Alcântara permanece preservada do ponto de vista do meio ambiente, a forma como essas pessoas lidam com a terra, com os recursos, ainda é muito respeitosa, então acho que esse é um ponto muito forte. 

O aspecto religiosos ele se perdeu muito, porque era uma região que era muito praticante da cura, hoje você não tem mais, porque nós sofremos uma invasão muito forte das Assembleia de Deus, tomou de conta, então a gente perdeu muito isso. 

Mas tem ainda as festas dos santos padroeiros, toda comunidade tem a sua. 

Quero agora perguntar sobre a base aeroespacial, quando e como foi criada a Base de Alcântara? 

Em 1980 a base começa a ser construída, o primeiro ato de estado. Teve o decreto de 1980 que desapropriou a terra e os primeiros remanejamentos começaram em 1983, aí vai até 1986 por aí. 

Desde então, tem momentos onde os Quilombos são preservados, considerados e outros não? 

Tem altos e baixos, o projeto inicial, que ainda permanece, é de 1980, que é um projeto da Ditadura Brasileira, houve os primeiros remanejamentos da terra no início da década de 1980, só que em 1988, nós temos a nova Constituição e aí sofre um corte na ideia, porque aí você teve a fase 1 e a fase 2 dos remanejamentos. 

A ideia era tirar todas as comunidades do litoral, então teria fase 1, fase 2, fase 3 e fase 4, para tirar todo mundo, mas só ocorreu a fase 1 e 2, pois logo veio a Constituição de 1988 e o Brasil passa por um processo de redemocratização e a Constituição reconhece a propriedade dessas comunidades e aí tem uma estagnação na ideia de tirar essas comunidades. 

O próprio programa aeroespacial sofre uma crise orçamentária, no começo da década de 1990, o programa era comandado exclusivamente pelos militares, a Aeronáutica, e com a crise administrativa e orçamentária, a base espacial passa a ser administrada pela Infraero, Empresa Brasileira de Infraestrutura e Aeroportuária, que é de natureza civil, para você ver aí a primeira crise. 

Então você tem até quase 1998, 1999, a Infraero comandando o centro de Alcântara, e a Infraero passa a negociar com as comunidades, o que não deu certo, porque em 1999 as comunidades têm a sua primeira reação mais contundente, do ponto de vista da política, porque se realiza o primeiro seminário “A base espacial e os impasses sociais”, que é nesse cenário que participam o Ministério Público Estadual, Federal e representante do judiciário e aí se discute o direito étnico, quilombola, se Alcântara é ou não um território quilombola como as comunidades dizem que são e partir desse cenário o Ministério Público Federal instaura um inquérito civil para investigar as violações e irregularidades ocorridas no processo de construção da base.

É solicitado uma perícia antropológica, para verificar se de fato alí é um território Quilombola, aí quando sai a pesquisa antropológica, o antropólogo que fez diz: “é um território quilombola, existem evidências históricas antropológicas que diz que aqui é um grande território Quilombola”, aí o Ministério Público entra com uma ação civil pública, contra a União, solicitando a titulação como Quilombola, aí para toda a história de tentar tirar mais comunidades, enfim. Embaralha todo o planejamento dos militares que até hoje, nós não conseguimos ter o título, mas eles não conseguiram avançar. 

Essa pesquisa, essa ação contra a União, fez com que parasse, mas não teve avanço?

Foram propostas duas ações. A das regularizações, que a União reconheça, demarque e titule, o que já foi, do ponto de vista formal, já teve até sentença sobre isso. Então o Estado não recorreu. Só não titulou, mas também não recorreu. 

E tem a outra ação sobre o passivo ambiental, porque a base funciona, 40 e poucos anos, sem a licença ambiental, não tem estudos de impacto ambiental, ninguém sabe os danos que as atividades espaciais geram para Alcântara, para o meio ambiente e para a população. Não se sabe nada sobre isso. 

O acordo com os EUA para exploração da Base de Alcântara foi feito ainda no Governo Bolsonaro….

Aconteceu em 2019. Foi uma das primeiras viagens que o Presidente Bolsonaro fez, foi para assinar esse acordo nos EUA com o Donald Trump. 

É um acordo antigo, a primeira versão desse acordo é do Fernando Henrique Cardoso, em 2001, só que na época coincidiu com a mobilização em torno da ALCA (Área de Livre-Comércio das Américas), que é uma proposta comercial dos EUA. 

A sociedade brasileira estava muito mobilizada em torno disso, de combater a ALCA e fez um plebiscito popular para perguntar a sociedade brasileira se era contra ou a favor da ALCA. Aí nós entramos nessa mobilização e conseguimos colocar uma pergunta sobre o acordo Brasil-EUA, tecnológico, se a população estava de acordo ou não, porque feria a soberania nacional. 

Aí o resultado foi que a maioria da população era contra o acordo. Nós fomos para o Congresso, enfim, o acordo acabou sendo arquivado. 

Ele volta para a ordem do dia com o Temer (2016), assim que ele deu o golpe, aí o Temer prepara tudo, porque foi um governo muito curto, e deixa o caminho pavimentado para o Bolsonaro só ir lá e assinar. Foi aprovado no Congresso em 12 de novembro de 2019. 

E de lá até aqui, o que caminhou? 

Ele foi promulgado no começo de 2020 pelo Bolsonaro e aí o governo já começou a fazer várias parcerias com empresas, já teve um lançamento. É Importante que a gente entenda que o acordo é de proteção da tecnologia americana, então qualquer empresa, seja ela de qualquer empresa, que use tecnologia americana e quiser usar a base de Alcântara, será protegida por esse acordo. Não é um acordo que se restringe a lançamento americanos, o único lançamento que teve até agora foi o lançamento de uma empresa sul-coreana, no começo de 2022. 

Sabemos as empresas que estão lá, pois elas fazem chamamento público, a agência espacial brasileira faz chamamento público. Só que está bem abaixo do que eles estavam esperando. Até agora só essa empresa sul-coreana conseguiu fazer lançamento. 

Tem alguma empresa brasileira? 

Que eu saiba não. Mas pode ser que apareça. 

E vocês deram entrada num processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos e na OIT, o que vocês reivindicam? 

No dia 4 de abril de 2019, o acordo foi assinado em março de 2019, e nós apresentamos uma reclamação contra o Estado brasileiro na OIT, por conta de que na celebração do acordo com EUA, não foi respeitado o direito de consulta prévia, livre e informada nas comunidades de Alcântara. Como se imaginava e segundo os documentos que nós temos, que vieram a público, o acordo demandaria a expansão da base no litoral de Alcântara, afetando várias comunidades. Aí nós pegamos isso e apresentamos a reclamação. Ainda em novembro de 2019, essa reclamação foi aceita pela OIT. O que quer dizer que ela preencheu todos os critérios técnicos para ser aceita. 

Em 2023, nós fomos chamados pela OIT, nós comunidades, e pelo estado, para saber se nós tínhamos interesse em conciliar. E nós dissemos que não, o caso seguiu para o exame de mérito, aí em abril deste ano a OIT decidiu recomendar o Estado brasileiro, que titule o território, que evite novos deslocamentos, que faça tudo para avaliar os impactos nas comunidades que já foram remanejadas e que se faça consulta prévia e que se caso haja a necessidade de novos deslocamentos que ocorra com livre conhecimento de causa e com concordância das comunidades. 

São 5 as principais recomendações que a OIT faz ao Estado. 

FOTO DA RECOMENDAÇÃO 

Dos processos que vocês têm conhecimento de recomendações da OIT, o Estado tende a respeitar? 

O Estado brasileiro tem histórico, independente de governo, do não cumprimento de recomendações internacionais, ou quando cumpre, não cumpre na sua totalidade. 

É Importante a gente saber que no caso da OIT, as recomendações não têm perfil de sentença, né? Elas não possuem efeitos vinculante, embora tenham todo um constrangimento internacional e, por conta disso, o Estado diga à OIT que vai cumprir, mas ela não tem um efeito vinculante. 

No caso da Corte Interamericana sim, ela tem perfil, peso e perfil de sentença e possui efeito vinculante, o estado tem a obrigação de cumprir. Vai ficar 20 anos lá para cumprir, mas vai cumprir, o Estado não pode dizer que vai cumprir em partes, ele tem que cumprir em algum momento. 

Esse caso da OIT vai incidir com outra reivindicação que é o projeto do Grão-Pará, que é no Maranhão, é um projeto português, que isso é importante falar, porque tem um projeto português de um porto em Alcântara que vai afetar esse território que é objeto de exame na OIT, que junto ao Porto nós temos a construção de uma ferrovia que vai conectar Alcântara ao município de Açailândia, que é região sul do estado, e essa ferrovia vai ser construída pela estatal alemã, chamada Deutsche Bahn, que é empresa ferroviária do governo da Alemanha. É um consórcio português, com aporte alemão, que vai impactar esse território aqui, que é objeto de exame na OIT. Cujo o impacto é 5 vezes maior do que os impactos gerados pelo centro de lançamento de Alcântara 

Depois de quase 2 anos do Governo Lula, vocês enxergam outros caminhos para a Alcântara? 

Com relação a Alcântara, tem uma pré disposição deste governo do Presidente Lula de titular Alcântara, ainda não titulou, acredito eu, que deve estar sofrendo pressão dos militares, a ideia inicial era titular todo o território, excluindo o litoral. 

Das últimas conversas que a gente teve com o Governo Lula, eles sinalizaram que estão abrindo mão disso, pois eles não conseguiram comprovar, eles que eu falo os militares, não conseguiram provar, inclusive para o próprio governo, que eles necessitam do litoral para suas parcerias comerciais. 

A indústria espacial no mundo está caminhando para se transformar num negócio menor, do ponto de vista da estrutura. A indústria espacial está caminhando para nanosatélites, o que exige estruturas bem menores. Por exemplo, a plataforma de lançamento de foguetes da base espacial de Alcântara, é um prédio com 45 metros de altura, então a empresa sul-coreana que fez o lançamento de foguete, no começo de 2022, fez o lançamento de sua própria plataforma que cabe numa carreta de caminhão, que é plataforma móvel até. 

Então eles não conseguiram comprovar isso, inclusive internamente, então eles estão convencidos de que não vale mais disputar. Mas esse é o tipo de coisa que eu só acredito vendo. 

Do ponto de vista administrativo e jurídico, não há mais nada que impeça a titulação do território de Alcântara, porque todo o processo está perfeito e não houve contestação nem do próprio estado, nem dos militares e nem de ninguém. Eles dizem que tem, mas não deram a real segurança sobre isso. O que está faltando é a ambiência política para Lula assinar o decreto. 

Eu até disse, na reunião que eu tive com ele, espero que Lula não seja covarde como foi em 2008, que a titulação, o processo, parou na mesa dele, só pra ele assinar, mas não assinou por pressão dos militares. Os militares, por tudo o que fizeram na história recente desse país, não merecem mais esse tipo de coisa. Lula tem que encarar e de uma vez por todas.  

Para encerrar, gostaria de perguntar sobre os investimentos em tecnologia aeroespacial, hoje se não há investimento, o país fica para trás. Qual seria sua opinião sobre esse investimento, em Alcântara ou não, como o Brasil deveria entrar? 

O Brasil tem uma lógica, está investido politicamente, numa lógica muito ruim, do não fortalecimento. Acho que a atual lógica aeroespacial, ela é sintomática disso, da política de não investimento no setor aeroespacial, que é um setor estratégico, em vários sentidos, do ponto de vista científico, tecnológico e do ponto de vista da própria soberania. Mas o Brasil, por exemplo, precisa regulamentar melhor essa lógica da comercialização da base espacial e da sua política espacial. 

Por exemplo, o acordo entre Brasil e EUA é extremamente leonino, não é aluguel, e o Brasil não ganha nada com isso. O Brasil só cedeu com o compromisso de proteger a tecnologia aeroespacial americana, isso é de uma sacanagem. E por outro lado, não existe nenhuma legislação federal que incida sobre os tributos e impostos de empresas estrangeiras que o operaram a partir deste acordo. 

Então a empresa chega, faz o lançamento do seu foguete e não deixa nada para o Estado. Não existe nenhuma norma, nada, o Brasil só perde com esse tipo de acordo. E está no acordo, que os recursos provenientes deste acordo não podem ser utilizados no investimento aeroespacial nacional. 

Então isso precisa urgentemente ser revisado. Não estou dizendo que o governo precisa abrir mão do acordo Brasil-EUA, mas essas cláusulas precisam ser revisadas, senão o Brasil vai poder investir no seu próprio programa aeroespacial. 

Você priorizar somente essa lógica comercial, você não vai ter retorno nenhum e condições de investir no programa próprio. 

Se continuar assim o Brasil vai voltar 50, 60 casas, não vai avançar. E para avançar nisso, o Brasil não precisa de mais terras, na área efetivamente ocupada pelo lançamento de Alcântara, que é uma área de 8.000 e poucos hectares, é utilizada somente 8%. Isso dados do próprio Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Então você tem ainda, tecnicamente, condições de construir mais 8 plataformas de lançamento dentro da área ocupada no centro de lançamento. 

Considerando que a indústria aeroespacial está cada vez menor e demandando cada vez mais menos infra, isso você tem aí num espaço de tempo de no mínimo 80 anos para fazer lançamento de foguetes até você precisar de mais terras, isso se não houver uma mudança na geopolítica internacional. O Elon Musk está lá, investindo em satélites, em outras tecnologias, do ponto de vista internacional, a política espacial está mudando e está sofrendo um processo de privatização. Antes era prioridade dos Estados e hoje não, hoje são empresas que controlam isso 

Essa política, essa lógica de comercialização, ela já deu todos os sinais que ela não dá certo e nós temos experiências concretas sobre isso. A parceria Brasil-Ucrânia em 2008, a Ucrânia em crise já naquela época, em crise política na Europa, com a Rússia, não deu conta de arcar com a sua parte financeira no acordo, o projeto não deu certo, deu um prejuízo de milhões de dólares para os cofres públicos do Brasil. Fizeram a parceria e o Brasil ficou no prejuízo, foi criada uma empresa. Eles estão repetindo a mesma coisa com a ALADA (Empresa de Projetos Aeroespaciais do Brasil), o mesmo erro. 

A parceria comercial deve ser uma das frentes do setor, mas o Brasil precisa chamar para o centro o investimento no seu próprio projeto aeroespacial. 

Tem outro problema sério, administrativo, quem coordena esse programa. A FAB (Força Aérea Brasileira), o Ministério da Ciência e Tecnologia, o Ministério da Defesa, a Agência Espacial Brasileira, Aeronáutica, agora vai entrar a ALADA, tudo isso com papéis e atribuições diferentes. E cada um com orçamentos oscilantes, porque alguns tem mais e outros menos, isso é muito ruim do ponto de vista administrativo, orçamentário, é difícil administrar um projeto que é tão importante para o país. 

O Brasil precisa repensar algumas coisas se quiser entrar de fato nessa nova era da corrida espacial.